domingo, 5 de junho de 2016

Uma Pimenta Pro Satoru



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História premiada no Concurso Literário Nacional, São Paulo Alpargatas de Histórias das Estradas - Versão 1987.
Publicada pelas revistas: "5ª RODA" e "O CARRETEIRO." 
São Paulo - SP.

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Na sede da ABCAM - Associação Brasileira de Caminhoneiros, todos trabalhavam em regime de serão.
Cuidavam do nascimento da menina, "5ª RODA" [revista].
Houve uma pausa quando entrei na grande sala, dando bom dia e carregando um enorme cacho de cocos verdes. 
O repórter Satoru Takaesu [não é palavrão, é o seu nome de batismo mesmo], foi o primeiro a falar, exclamando após parar de cutucar o teclado da pequena máquina:
- Essa gostei; um coquinho verde da Bahia!
Fonseca, presidente da ABCAM, e Bolívar, funcionário, alimentaram o papo. Elogia os troços da Bahia daqui, elogia dali, foi então que o Satoru mexeu com os meus brios, ou melhor, mexeu com o orgulho dos baianos comentando:
- Terra boa a sua, Orlando. Passei por lá de passagem. Agora, somente uma coisa me decepcionou na Bahia; foi o tão falado e badalado molho de pimenta baiano! Eu sou, desde pequeno, um inveterado comedor de pimenta e entendo muito delas. Pois, para lhe ser franco, não vi nada demais no tão enaltecido molho de pimenta da sua terra. Aqui mesmo em São Paulo, já provei molho de pimenta mais forte e mais saboroso do que o de vocês. E em restaurantes tipicamente paulista, pra você não alegar que foi em cozinha baiana. O que existe mais é fama, Orlando, nada mais que isso.
Dei nos calos:
- Como é que é a história, Satoru? Você já esteve na capital? Já provou do molho das baianas do acarajé? Comeu um mocotó apimentado na Sete Portas? Uma feijoada no Mercado do Ouro, regada a molho verde de pimenta de cheiro, ou um pirão de fato de carneiro com pimenta malagueta, na Feira de São Joaquim? [antiga Água de Meninos] Já provou, no Mercado Modelo, uma moqueca quente de siri mole, ao azeite de dendê, já?
Satoru sorriu debochado e respondeu:
- Ora Orlando, passei por Feira de Santana, vindo de Recife. Não fui em Salvador, mas é tudo a mesma coisa, é tudo Bahia.
- Escute Satoru - tentei explicar, - o que faz a pimenta arder, ficar forte e saborosa é o modo de preparar. Quando isso é feito por quem entende do babado, o molho chega a multiplicar seu ardor e sabor, por mais de dez vezes. E, praticamente, somente as baianas do acarajé, é quem sabe fazer isso. Os molhos de pimentas do interior não entram em conta. Eles botam as pimentas num litro com vinagre ou álcool e pronto.
Satoru sorriu e disse:
- Qual nada Orlando, até hoje não encontrei um molho de pimenta que eu não beba, pelo menos um copo como se fosse refresco.
- Olha Satoru - prometi, - semana que vem vou dar uma chegadinha no Bom Juá do Retiro. Lá mora uma velha, ex-baiana do acarajé e que sempre fez e faz o melhor molho de pimenta da Bahia. Vou encomendar um litro dele na conserva e trazer de presente pra você. A vovó Samaria, outrora, forneceu litros e mais litros do seu famoso molho, até para gringos que sabiam da sua fama de rainha da pimenta. Hoje está aposentada, mas duvido que negue um pedido meu. Ainda moleque, vizinho dela, muito lhe ajudei a carregar a cesta, o fogão e o tabuleiro do acarajé.
Satoru voltou para a máquina, na maior gozação:
- Pimenta baiana... Quá, quá, quá!

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Cinco dias depois, retornava à boa terra. Assim que descarreguei o caminhão, antes de ir para minha casa, passei na casa da vovó Samaria no Bom Juá. 
Casinha humilde, assim que bati na porta e ela foi aberta, um aroma gostoso de incenso invadiu minhas narinas, uma voz doce meus ouvidos e a imagem de uma anciã meiga os meus olhos.
- Que os bons orixás da Bahia lhe traga, meu Landinho sumido e que nunca mais veio ver a nega veia!
Sorri para a velhinha negra, cabeça alva, baforando o inseparável cachimbo e, estirando o braço direito com a mão espalmada, saudei:
- À benção vovó Samaria.
Ela me entregou a Oxalá [Deus], todos os orixás e mandou entrar.
Enquanto caminhava, lhe entreguei uma caixa embrulhada com papel de presente, dizendo:
- Vovó, em São Paulo dei uma chegadinha no centro da cidade,  comprei uma camisola de dormir e algumas toalhas de mesa pra senhora...
Ela pegou a caixa, toda sorridente e exagerando nos agradecimentos.
Lá dentro, junto do gongá [altar], fui direto ao assunto:
- Vovó, preciso de um litro da sua pimenta para presentear um amigo repórter em São Paulo. Mas faço questão que seja do molho dois ardores. Sabe vovó, esse amigo, passou ali por Feira de Santana e comparou a pimenta do interior a toda pimenta baiana. Está esculhambando com a nossa pimenta! Falei pra ele da sua fama de rainha da pimenta. Pois não é que ele debochou e disse que do seu molho, vai beber num copo feito refresco e que velha baiana sabe muito é se sacudir em terreiro de macumba! 
A vovó exclamou, retada da vida:
- O que? Esse reportersinho  desfez do meu molho de pimenta! O meu molho reverenciado até nos estrangeiros?!
Botei mais lenha na fogueira:
- Desfez sim, vovó Samaria! E ainda zombou da senhora no maior desrespeito e disse mais isso, isso e isso...
- Pára, meu Landinho, chega. Volte aqui amanhã pra pegar o litro da pimenta na conserva. Esse reportesinho vai ver e sentir o que é um molho de pimenta, feita no capricho, pela vovó Samaria.
Despedi-me e quando saía, ouvi ela pedir pra neta na cozinha:
- Nininha, vá no quintal pegar pimenta de cheiro, malagueta, limão, coentro, e salsa. Depois passe na bodega do seu Veloso e traga uma meiota de cachaça, um frasco de dendê, cebola-roxa, alho...
Não escutei mais nada. É, pensei para mim mesmo, a vovó Samaria está com o seu orgulho ferido. Um litro desse molho, vai fazer mais efeito do que um "coquetel molotov!" Ora se vai.
No dia seguinte, quando peguei o litro com o molho de pimenta e outros quinze ingredientes, a vovó recomendou:

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Meu Landinho, avise pro seu amigo repórter, ou quem mais for comer deste molho, pra não botar mais de dez gotas, num prato. Mais que isso, a vovó Samaria não se responsabiliza pelas consequências.
No sábado pela manhã, carregado com destino ao porto de Santos, passei na ABCAM para deixar a pimenta pro Satoru. Ele ainda não havia chegado. Entreguei o litro pro Bolívar e avisei da potencialidade do molho! Também dei o recado da vovó Samaria. Bolívar sorriu:
- Esse molho chegou mesmo no dia e hora certa! O cardápio do restaurante aí ao lado é feijoada à baiana.

Na segunda-feira à tarde já subia a Imigrantes, de volta, carregado de vidros planos, para Salvador. Cerca de cinco horas da tarde, parei em frente do Estacionamento da Coroa, para bater um papo, como sempre, com a turma da ABCAM.
Bolívar aproximou-se e perguntou, com expressão sombria:
- Orlando, está chegando agora? Já soube o que aconteceu?
- Cheguei agora e não estou sabendo de nada, Bolívar! Mas que cara é essa homem! O que  houve?
- Ora o que houve... acho até melhor você se mandar com o teu caminhão. O Satoru está lhe procurando pra lhe esfolar vivo. Esfolar sem piedade, é o que diz a toda hora!
- Mas o que aconteceu com ele, Bolívar?
- A pimenta que você trouxe quase mata o nosso repórter!
- Como quase mata! Você não lhe deu o recado da vovó Samaria, de não usar mais de dez gotas...
- Avisei sim - cortou ele, - pois escute; assim que você saiu, logo depois Satoru chegou. Entreguei-lhe o litro e avisei da violência do molho. Ele começou a fazer pouco da pimenta e disse sorrindo que meio-dia ia comer feijoada com pirão de pimenta da Bahia. Quando sentamos no restaurante, Satoru já tinha castigado umas quatro doses de 51. Aí, já meio 'calibrado', meteu pimenta no prato da feijoada. Caçoava, depois de ter entornado um copo cheio do molho, dizendo debochado: "Vejam o que faço com essa tal de pimenta baiana!"
- Tá louco Bolívar! Mais de dez gotas daquele molho já é dose pra elefante, um copo então deve dar umas quinhentas gotas!
- Pois é, Orlando, na mesa junto com ele estava eu, Claudio e o Fonseca. De repente os olhos de Satoru foram ficando vermelhos feito brasas e brilhando cheios de água! Aí aconteceu uma coisa incrível...
- O que Bolívar, o que?!
- Acredite; os ouvidos do Satoru começaram a fumaçar! Depois foram o nariz, a boca e os olhos. Tudo fumaçando! Até pelos fundilhos saía fumaça! Fumaçava por tudo quanto era de buraco!
Depressa ele bebeu quase um litro de água gelada, mastigou umas dez pedras de gelo e nada. O coitado parecia uma caldeira em ebulição! Foi aí que Satoru saiu correndo com a boca aberta, aí pela área do estacionamento. Corria feito um condenado, fazendo vento pra refrescar a boca em chamas, parecendo mais com uma espada de São João, com aquele fumaceiro atrás dele! 

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De um salto subiu na cabine de um Scania, pulou sobre a lage do restaurante e, quando desceu, disparou correndo pela Av. Cruzeiro do Sul, em direção ao centro da cidade, sempre com a boca aberta. Fomos atrás, no fusca de Fonseca. Acredite Orlando; o carro a 70 km e não conseguimos alcançá-lo! Ali na ponte ele deu uma paradinha e ameaçou se jogar nas águas sujas do Tietê, pra apagar o fogo. Desistiu e continuou correndo pela avenida. Dobrou à esquerda, na Av. do Estado e agente atrás, no fusca. Sabe onde o alcançamos?
- Não tenho a mínima ideia, Bolívar!
- Ao lado da Galeria Pajé. Gemia e amaldiçoava você e a tal de vovó Samaria que aprontou a pimenta! Que molho é aquele, Orlando! Fonseca derramou no chão, o resto que sobrou no litro e riscou um fósforo. O líquido pegou fogo mais rápido do que se fosse gasolina aditivada! E vou te dizer mais, se aquele fumaceiro e toda aquela pressão tivesse saído somente pelo "toba" do Satoru, juro que o nosso repórter levantava voo!
- É - admiti - a vovó Samaria caprichou mesmo! E cadê o Satoru, precisou baixar em hospital?
- Não foi preciso - disse Bolívar, - mas tá passando o diabo. Desde sábado que só consegue dormir de bunda pra cima. Não consegue sentar e dirigir nem pensar. Agora mesmo está aí dentro da sede, batendo máquina, de pé,  adiantando algumas matérias para o lançamento da revista [5ª RODA]. Um ventilador está ligado direto, soprando a sua bunda!
Exclamei:
- Como ele só pode ficar de pé! O que mais lhe aconteceu, além da caloria na boca e o fumaceiro?
Bolívar juntou as pontas dos dedos indicadores e polegares, formando uma enorme roda com as duas mãos e finalizou penalizado:
- O coitado do Satoru está com o olho do "toba" igual uma couve-flor e vermelho feito um pimentão maduro! Se manda daqui, Orlando. Molho desgramado aquele; arde na entrada e esfola na saída!
- Segui os conselhos do Bolívar. Entrei na cabine e me arranquei o mais depressa possível. Iria levar um bom tempo sem aparecer, até as "coisas esfriarem!"
Também, de uma coisa tenho a mais absoluta certeza: nunca mais na vida, Satoru vai debochar da pimenta baiana. Isso não vai mesmo.
À benção vovó Samaria.

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