domingo, 5 de junho de 2016

Uma Canção de Ninar



   
  "Por incrível que lhe possa parecer, esta é uma história verídica"

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Eram cerca de oito horas da noite quando entrei com o meu
caminhão na área do posto Pau de Vela, a dois quilômetros da cidade de Santo Estevão, na Bahia. Tinha um pneu do truck baixo.
Parei na área da borracharia, ao lado de um velho, porém conservado F.N.M. carregado com tubos de ferro. 
Como o borracheiro era da minha inteira confiança, mostrei-lhe o que deveria ser feito e armei a rede nos grampos de amarração, na traseira da carroçaria. Ainda ia viajar e precisava descansar, um pouco que fosse.
Foi aí que percebi a numerosa família do colega, sentados em banquinhos dobráveis, em volta da "cozinha"; um gavetão no lado direito da carroçaria. Eram quatro crianças, quase uma 'escadinha'.   O pequeno fogão a gás, de duas bocas, fervia alguma coisa num caldeirão.
O caminhoneiro começou a tarefa de servir, pondo arroz, um pouco de feijão e um ovo estalado em cada prato.
 - Pai - resmungou um deles de uns quatro anos, - não tem carne? Eu não gosto de comer ovo.
O colega, respondeu de forma paciente, explicando:
- Filho, quando peguei o adiantamento da carga, tudo o que era de armazém e mercados já estavam fechados, mas lhe prometo que amanhã, aí pra frente, papai compra carne e linguiça.
Um outro menor, também fez biquinho e reclamou:
- Pai, num quelo  zantá, eu quelo é bicoito.
- Filho - respondeu o pai, com a mesma paciência, - biscoito é para merendar, você tem de comer este alimento pra ficar forte que nem o papai.
- Mas depois de zantá e ficá fote que nem você, eu quelo é bicoito - insistiu.
O maior de todos, encheu um prato e o entregou a uma menina menor que ele. Uma lâmpada pendurada na grade da carroçaria, alimentada por um fio, vindo da bateria, clareava o ambiente ali. Da rede onde estava, tinha uma visão completa de todos. Resmunguei em pensamentos, para mim mesmo: "Mas esse colega trazer tanto menino pra passear, é preciso ter muita paciência!
Corri as vistas pela área do posto e não vi sinal de mulher pelas redondezas. A mãe, certamente, deve estar no banheiro ou..."
Um choro de bebê teve início, dentro da cabine, interrompendo meus pensamentos. Tinha mais um, lá dentro; certamente a mãe estava lhe cuidando. 
Ao ouvir o choro, o colega se apressou para a cabine. Voltei a contemplar a meninada, todos sentadinhos, comendo com colheres. Fixei-me neles. O que pedia 'bicoito', parecia ter dois aninhos. O que não gostava de ovo, de três a quatro. A menina, mais ou menos, cinco a seis, e o maior, aproximadamente dez anos. De repente, o colega desce da cabine segurando o neném e o leva até a torneira da área do posto. Antes avisa para as crianças:
- Comam direitinho que vou ali na torneira. A Lulu fez cocô, preciso trocar sua fraldinha. Quando terminarem, Paulinho, espalhe a esteira no chão e forre com um lençol. 


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Tá fazendo muito calor na cabine, vamos dormir do lado de fora. Também cuide para o engrossante não virar mingau. Quando esfriar, ponha na mamadeira.
Interessante - pensei, - onde está a mãe desses meninos? Instantes depois ele retornou, pegou a mamadeira que o filho lhe entregou, sentou-se numa cadeira dobrável e começou a tarefa de
alimentar a pequenina. Pediu:
- Paulinho meu filho, vá arrumando os mantimentos na "cozinha". Depois que a Lulu adormecer, cuido da lavagem dos pratos e panelas.
Minutos mais tarde o neném, de barriga cheia, o colega levanta-se segurando a pequenina na vertical e começa a andar de um lado para o outro, até que ela arrotou. Feito isso, deitou-a ao lado da maiorzinha. Em seguida, pegou duas enormes varas num canto da carroçaria, enfiou as duas pontas nas bordas do encerado caído sobre o "gavetão-cozinha" improvisando uma cobertura rústica. Atenuaria o sereno da madrugada sobre eles.
- À benção papai - disseram um após outro.
- Deus lhes abençoem, meus filhos - respondeu ele, distorcendo o bocal e apagando a lâmpada.
Em seguida deitou-se entre o bebê e o que gostava de "bicoito".
- Pai - indagou o pequeno, - cadê mamãe, eu só goto de dumi mais cum ela. Puquê ela nunca mai votou? 
Instantes mais tarde ele adormece, sempre perguntando pela mãe.
O colega, ao perceber todos dormindo, levantou-se cuidadosamente e se encaminhou para a traseira da sua carroçaria.
Lá, ficou de pé, recostado na grade, com expressão tristonha, olhar sereno, parado, fitando um ponto qualquer daquela noite de lua e de estrelas.
Quieto na rede eu fingia dormir, quando vi seu filho maior levantar-se da esteira, caminhar até ele e perguntar:
- O senhor está chorando não é, meu pai? Vejo na claridade da lua, as suas faces molhadas!
O colega espremeu os olhos com as pontas dos dedos e respondeu, com tristeza, no tom da voz:
- Não é o que você está pensando, filho. Foi somente um cisco que me caiu num olho.
O menino retrucou:
- Eu sou pequeno meu pai, mas já tenho a idade suficiente pra distinguir a lágrima de um cisco de uma lágrima de dor. O senhor está sofrendo muito, muito mesmo, eu sei - abraçou-se na cintura do pai e prosseguiu, agora chorando. - Nós também estamos sofrendo, sentindo a falta dela. É uma dor enorme, uma saudade sem fim.
O pai, acariciando os cabelos do filho, disse:
- Paulinho, meu filho, você já é um hominho, sabe e entende tudo o que se passou. Portanto vamos ser fortes e guardar essa dor, somente para nós dois. Os pequenos precisam ser poupados disso que estamos passando. Eles, agente pode ir enganando com uma boneca, um biscoito, uma mamadeira ou uma cantiga de ninar. 


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Vamos aguentando esse tranco de cabeça erguida, até que a poeira do tempo, se encarregue de apagar tudo. Temos de suportar essa dor sozinhos, temos de poupar eles. Com sacrifício, sei que conseguiremos.
O menino levantou o rosto molhado para o pai e disse:
- Agente vai conseguir, meu pai. Agente vai conseguir.
- Vá se deitar filho - pediu o pai, - vou lavar a louça.
- Eu lhe ajudo, pai - se apressou o garoto.
- Obrigado Paulinho, faço isso sozinho. Amanhã, aí pra frente, você me dá uma mão nas fraldas e roupinhas. Vá se deitar para acalentar alguns deles que possam acordar. Vamos sair com o amanhecer...
Antes de retornar, o menino segurou no braço do pai e disse:
- Pai, eu te amo muito, muito mesmo.
O colega respondeu carinhosamente:
- Também amo a todos vocês, meu filho.
Abraçaram-se emocionados.
- À benção meu pai.
- Deus lhe abençoe, Paulinho.
O colega pegou a bacia com a louça e seguiu para a torneira do posto. O menino se deitou junto aos irmãos e se cobriu com um lençol.
É, murmurei para mim mesmo em pensamentos: o coitado ficou viúvo e não tem muito tempo, pois o bebê, se muito, deve ter uns seis meses. Situação filha-da-mãe, a desse colega. Sozinho pra cuidar dessa 'escadinha' de filhos!
Minutos mais tarde, o menino maior levantou-se e foi até o fundo da carroçaria urinar. Sentei na rede e, quando ele retornava, puxei conversa:
- Calor danado está fazendo, não é garoto?
Ele respondeu de forma educada:
- Tá quente sim, moço.
- E a meninada, dá uma senhora trabalheira, não é?
- É sim - respondeu compreensivo, - mas com paciência a gente vai levando.
Após uma breve pausa, indaguei, entre constrangido e curioso:
- A mamãe de vocês, tem muito tempo de morta?
Ele olhou para o pai lavando a louça, voltou as vistas pros irmãozinhos deitados na esteira, olhou pra mim e respondeu, numa mistura de tristeza e vergonha:
- Mamãe não morreu, ela fugiu com outro homem e abandonou todos nós. 
- Meu Deus - exclamei! - mas aquele neném naquela idade?! Os outros... Como uma mãe pôde fazer uma coisa dessa!!
Ele começou a caminhar de volta para a esteira. Deu alguns passos, voltou-se e finalizou, diante da minha incredulidade:
- A caçulinha tem sete meses, tinha quatro quando mamãe foi embora. Papai estava viajando, chegou oito dias depois e encontrou agente à toa pelas casas dos vizinhos. Aí, sem ter com quem nos deixar, botou todos na cabine do caminhão. Esse carro agora é nossa casa, nossa escola, é tudo - triste, olhou para o pai e prosseguiu. - E papai, agora, além de ser nosso pai, é também a nossa mãe. Boa noite, moço.
- Boa noite, meu menino - respondi.
Quase onze horas, estava com o caminhão pronto para viajar. Subi na cabine. O colega dormia na esteira com o bebê junto ao seu corpo, quase sob sua axila esquerda. Um pequeno rádio a pilhas, estava sintonizado num programa de músicas sertanejas. O locutor anunciou a bela música do cantor Sérgio Reis.
    
"Agora vai para vocês, amigos caminhoneiros, uma canção para acalentar suas almas e enternecer seus corações... Rio de Lágrimas"
"O rio de Piracicaba, vai jogar água pra fora, quando chegar á lágrimas dos olhos de alguém que chora..."
    
Pensei: duvido se esse colega não esteja derramando, uma lágrima que seja, ao ouvir uma música tão sublime quanto essa!
Quando funcionei o motor, o barulho da descarga acordou a caçulinha que começou a chorar. Arranquei o carro com o mínimo possível de aceleração para não despertar os outros. 
Afastado-me, dei uma última olhada para debaixo da cobertura de lona. O colega, ao ouvir o choro da pequenina, sentou-se e, pacientemente a pegou nos braços. Meio sem jeito, embalando-a, começou a cantar uma musiquinha de ninar, num tom de voz, um tanto destoada.
    
"Dorme neném, eu tenho o que fazer, vou lavar e engomar, uma roupinha pra você... Dorme filhinha, a cuca vai pegar... Dorme filhinha, dorme"...

Naquela noite eu aprendi que, nem toda mãe é mãe, como também, nem todo pai é pai.

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