domingo, 5 de junho de 2016

O Vampiro do Pelourinho



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Poucas pessoas, muito poucas mesmo, sabiam o verdadeiro motivo pelo qual Damião, caminhoneiro veterano, largou a estrada para sentar atrás do volante de um automóvel de praça. Eu era um desses poucos privilegiados, junto com os seus familiares.
Quantos colegas, nos bate papos ao pé da cozinha do bruto, regados a vinho de garrafão, exclamavam incrédulos: "Como é mesmo a estória? Damião vendeu o caminhão e agora está acomodado por trás de um volante de táxi? Aquele colega acostumado a atravessar este Brasil de norte a sul e de leste a oeste! Essa foi mesmo de lascar!"
"Idade não é", comentavam, "O Damião ainda está beirando os quarenta, vendendo saúde e mais forte que um touro do pantanal!"
Pois bem; o certo é que ninguém conseguia engolir aquela atitude do colega. Como enfiar cuca a dentro ou guela abaixo, a resolução quase louca do Damião! Caminhoneiro veterano, viajado, estradeiro, de uma hora para outra, virar chofer de praça! Aquele gesto dele, para a caminhoneirada, era dose, dose dupla, melhor dizendo. Alguns até arriscavam: "Será que os arrebites, usados, vez em quando pelo  Damião, não afetou a sua cabeça e ele está meio lelé da cuca?!
    
Mas a verdade foi que Damião abandonou a estrada por um motivo que, para muitas pessoas chega a ser banal, mas para ele, era troço sério. Mais que sério, era troço seríssimo. Damião se pelava de medo de assombração. Nos pequenos lugarejos de beira de estrada, viajando à noite, quando ele olhava para aqueles pequenos cemitérios, geralmente no meio das colinas, com as suas sepulturas banhadas pela luz da lua, o homem suava em bicas. Não adiantava lhe dizer que quem morreu quer é descanso, nem isso e nem aquilo. Ele redarguia na bucha: "Prefiro enfrentar dez ladrões à uma alma penada!"
Realmente muitos colegas souberam ou testemunharam que Damião, certa feita, brigou de meia-noite às três horas da madrugada com quatro soldados e dois leões de chácara, numa boate da cidade de Porto Real do Colégio, no estado de Alagoas. Fechou o brega. Bateu em soldado, puta, bicha e o diabo a quatro. Nessa noite só deu Damião. Vagabundos e ladrões de estrada, já perdera a conta de quantos arrebentou. Agora falou em assombração...
Até que numa certa noite de vampiro... quero dizer: de lua cheia, aconteceu o imprevisto que fez Damião abandonar, de uma vez por todas, a vida de caminhoneiro estradeiro. Seu bruto enguiçou em frente do cemitério da cidade de Anta-RJ, bem ali entre as cidades de Sapucaia e Três Rios, às margens do Rio Paraíba do Sul. Na impossibilidade de sanar o defeito, Damião se trancou na boleia e ficou, toda a noite, espiando pelas frestas da cortina, o cemitério lá no alto, refletindo nos mármores dos túmulos, a claridade da lua cheia. Suando frio e tilintando os dentes, olhos esbugalhados pro alto da colina, disse e repetiu para si mesmo, durante toda a noite:
"Essa é a minha última viagem na estrada! A última, a última!!"
    
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Corria o ano de 1965. Cheguei de viagem e, no dia seguinte, um domingo ensolarado, dei um pulo na Baixa do Bonfim para visitar o velho colega e checar como ele ia na 'nova profissão'. Encontrei Damião com uma mangueira e uma flanela nas mãos, lavando um Aero-Willys de praça. Após muito papo, cerveja, algumas caipirinhas e velhas recordações, dei uma alfinetada no colega amigo, numa vaga esperança de induzi-lo de volta à vida de caminhoneiro estradeiro.
- Decisão besta da porra essa sua, Damião! Aqui em Salvador, também não tem cemitério? Vez por outra você não pega corrida passando em frente deles, hein, hein?
Ele respondeu na bucha:
- Acontece que os cemitérios aqui de Salvador são todos arrodeados de residências, ao contrário dos das estradas, geralmente desertos, afastados das ruas. Orlando, me responda: você já ouviu falar de assombração em cemitérios de cidades grandes? Responda, vá! Responda!
É, não adiantava mesmo insistir. Damião estava mais que 
decidido, com a cabeça feita. Me despedi lamentando:
- Muita felicidade pra você nessa nova vida amigo. A estrada vai sentir a sua falta.
Foi nesse mesmo ano, mês de agosto, que Damião, após uma tenebrosa noite chuvosa de uma sexta-feira 13, resolveu colocar esse anúncio em todos jornais de Salvador: "Urgente. Vendo ou troco por caminhão, táxi Aero-Willys, ano 1962, super conservado. Motivo: caminhoneiro saudoso da estrada. Tratar com Damião no ponto do Terreiro de Jesus."
Muito poucas pessoas também sabiam da verdade sobre essa repentina saudade do Damião pela estrada que ele jurou, de mãos postas, abandonar. Eu sabia, mas ele ameaçou torcer meu pescoço se eu espalhasse a versão verdadeira entre a caminhoneirada. Hoje, arriscando meu pescoço, conto a história, segredada a mim, pelos seus familiares.
Tremenda noite de sexta-feira chuvosa. Há dias que a cidade vinha sendo castigada por aguaceiros e violentos temporais. Chovia todo santo dia. Cerca de onze e quarenta da noite, o Aero-Willys de Damião estava estacionado no ponto de táxi, ali no Terreiro de Jesus, trancado. A praça chuvosa era um deserto. Alguns vagabundos, raparigas e travestis, jogavam conversa fora, debaixo das marquises. Damião fora ao Cine Excelsior, na Praça da Sé, assistir um filme sobre o Conde Drácula. Era a primeira fita de terror que via em toda sua vida. Um colega de praça, ao sabê-lo tão temeroso das coisas do além, o aconselhou, no dia anterior: "Damião, você tem de cortar pela raiz, esse medo bobo pelas coisas do além! Alma penada, lobisomem, vampiros, isso tudo só existe na cabeça de quem quer que eles existam. Você diz que numa sexta-feira 13 não bota os pés fora de casa nem por um decreto. O negócio é enfrentar tudo isso na tora, de cara limpa. Pois bem; amanhã é sexta-feira 13 do mês de agosto de 1965. Faça as contas e verá que, o último número do ano é cinco e, multiplicado por 13 dá 65, justamente a última dezena desse século, portanto um dia do ano repleto de números 13 e cheios de maus presságios.

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Comece daí a mostrar para si mesmo que isso tudo não passa de meras superstições e receios infundados que só existem mesmo dentro da sua cabeça fantasiosa. Damião, amanhã pegue seu carro, saia pra rua e vai rodar. Mais ainda; à noite, aproveite e vá assistir aquele filme do Conde Drácula que tá passando no Excelsior. Mostre que você é mais você. Quando chegar em casa, depois da meia-noite, mire-se num espelho estufe o peito e diga: eu venci. Passei por uma sexta-feira de um mês de agosto, com um final de dezena de cinco 13 e não me aconteceu nada, nada!
O coitado do Damião embarcou na conversa do colega.
Quase meia-noite, a sessão chegava ao término. Damião, nessas alturas, já estava com os cabelos da cabeça eriçados e suando frio pelos sovacos, pregado  na poltrona. O enredo do filme, para ele, era mais que tenebroso! Primeiro, uma princesa da Transilvânia, por quem o Conde Drácula era apaixonado, foge de navio para Londres. O vampiro atacou uma jovem indefesa na aldeia e, cravando as presas no seu pescoço, sugou todo o seu sangue para adquirir forças e seguir em busca da amada, transformado em morcego. Depois que sugou todo sangue, enfiou uma estaca pontiaguda no coração da vítima. O corpo pálido da mulher se estremeceu e um grito longo, pavoroso, horripilante invadiu o salão e a plateia.
Damião já estava quase mijado de medo e, desde o início do filme, roía as unhas num nervoso indisfarçável. 
Mais tarde o filme chega ao final. A princesa escapa e, novamente, regressa à sua terra natal. O Conde Drácula, também precisando voltar, necessita de sangue. Procura como um louco e não encontra uma mulher para lhe chupar o pescoço [vai gostar de chupar mulher assim na Transilvânia]. Então, aproveita a escuridão enevoada de Londres e, quando ia pagar a corrida para o cocheiro, no cais do porto, enfia as terríveis presas no pescoço do pobre homem. O filme termina com o grito horroroso do cocheiro ao receber uma estaca pontiaguda no meio do coração.
As luzes se acendem e Damião, apavorado, quase não consegue ficar de pé. Sorriu amarelo para outros espectadores, procurando disfarçar o medo que estava sentindo. 
Na rua, seguiu para o Terreiro de Jesus, se esgueirando pelas paredes e sob marquises, tentando evitar a chuva, agora torrencial. Resmungava quase em voz alta: "Porque fui na conversa daquele filho de uma jumenta, o Boca de Chulé. Assistir a um filme terrível desse! Acho que vou levar uma semana pra conseguir dormir direito. Mas também, em compensação, quando chegar em casa depois da meia-noite já dia 14, vou me olhar num espelho e dizer pra mim mesmo: eu VENCI!" Arrematou orgulhoso.
Entrou no carro, acendeu os faroletes, consultou o relógio no pulso e disse em pensamentos: "já se aproxima da meia-noite. Tá se vendo mesmo que esse negócio de sexta-feira 13, mês de agosto e outros troços é tudo superstição. Que palhaço fui durante toda a minha vida, com esses medos infundados, bestas. Olha aí; praticamente já passei por essa sexta, 13 de agosto, com a dezena final do ano multiplicada por cinco 13  e não me aconteceu nada de estranho, nada! Realmente o Boca de Chulé tem lá as suas razões. 

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Até vou até ver se consigo pegar algum passageiro. Quem sabe tenho sorte e aparece um para a Cidade Baixa. É caminho para a minha casa."
Ao olhar à sua direita viu, vindos dos lados do Pelourinho, um homem vestido de preto. Se aproximava envolto por uma enorme capa preta. Usava chapéu, também preto, de feltro e com abas lisas, em horizontais, quase uma cartola se a parte do meio fosse mais alta. Ele era alto e magro, muito magro. Apesar da chuva estar caindo pesada, o homem se aproximava sem correrias, caminhando devagar como se não tivesse pressa. 
A primeira impressão de Damião ao vê-lo, foi que ele era parecidíssimo com o Conde Drácula, o vampiro do filme. "Está vendo", recriminou a si mesmo, agora em voz baixa, "o filme já te deixou pensando besteiras. Onde se viu ou ouviu falar de vampiros em pleno centro de Salvador!"
Desviou as vistas daquele homem solitário e procurou pensar coisas diferentes, distantes, quando ouviu ele indagar, na porta da frente, do lado direito:
- Está livre?
Damião, sem olhar para o homem, estirou o braço e destravou a porta de trás, respondendo: 
- Está sim, pode entrar.
O homem sentou-se lá atrás, bateu a porta e disse, num tom de voz seco, grave, estranho e curto:
- Cemitério do Campo Santo.
Quando terminou de falar, o sino da Igreja de São Francisco começou a badalar as 12 pancadas da meia-noite: blein, blein, blein...
Damião baixou a bandeira 2 do taxímetro, funcionou o motor, ligou o limpador do pára-brisa, acendeu os faróis e arrancou, ouvindo o sino batendo às suas costas. Passou pela Praça da Sé e entrou na Rua da Misericórdia, quando maus pensamentos e preságios ruins invadiram a sua cabeça.
"Passageiro estranho, esse! Que modo mais esquisito de dar o itinerário! Cemitério do Campo Santo, uma hora dessa?! Ora, se todo mundo que vai para aquele bairro diz simplesmente, Campo Santo. Cemitério, alguns só falam quando é dia de finados ou quando vão para enterros. Aí sim; vão para lá mesmo!"
Passando em frente ao Elevador Lacerda, Damião já começou a sentir um friozinho muito seu conhecido percorrer a sua coluna. Para deixá-lo mais inquieto e apreensivo, a chuva, relâmpagos e trovões aumentaram de intensidade.
Já na Rua Chile, deserta, entre um trovão e outro, Damião arriscou dar uma olhadela no seu passageiro misterioso, pelo retrovisor interno. Foi aí que, de repente, numa fração de segundo, juntou o pé no freio, fazendo o carro brecar, derrapando nos paralelepípedos molhados, em frente da loja Duas Américas. O incrível acabara de acontecer: Damião não enxergou o homem pelo espelho. Ele sabia que 'coisas do outro mundo' não se refletem em espelhos. Daí o seu apavoramento repentino. 
    
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Quando o veículo parou, ralando no meio-fio, Damião se voltou para o banco de trás, com os cabelos da cabeça completamente arrepiados. Seus olhos, quase fora de órbitas, encontraram o passageiro encostado bem no canto direito da larga coluna, naquele tipo de veículo. Por isso não o vira contra o vidro traseiro. O homem, ao ver o carro parar de forma tão brusca, indagou, secamente:
- O que houve?!
Damião gaguejou:
- F... foi um g... gato! Q... quase o atro... atropelo!!
Prosseguiu a viagem, agora sem mais olhar pro retrovisor. Se o fizesse novamente e não visse o passageiro, tinha certeza que teria um troço ao volante. Seria melhor ficar na dúvida que não o vira, devido a ele estar bem no canto escuro, portanto, fora do ângulo do espelho.
Mas o medo já invadira todas as células de Damião. Agora também, é que pressentiu algo que lhe deixou tremendo internamente. Aquele homem estranho cheirava a flores e, de longe, exalava um leve e inconfundível odor de velas queimadas.
Passando pela Praça Castro Alves, Damião já tremia mais do que um condenado no corredor da morte. Lamentou para si mesmo. 
"Porque não fiquei em casa nessa sexta 13! Como é que fui cair na conversa daquele filho de uma peste do Boca de Chulé! Esse homem não é normal mesmo. Ele é coisa do outro mundo! Tô sentindo aqui dentro um terrível odor de cemitério! Vou entabular conversa com ele. Quem sabe isso é somente mais uma das minhas impressões fantasiosas sobre o além. Esses meus medos, as vezes infundados. Queira o meu bom São Judas Tadeu, seja isso mesmo".
O Aero-Willys entrou na Rua Carlos Gomes e, passando pela entrada do Largo Dois de Julho, na altura do Braseiro, Damião juntou o que lhe restava de coragem e comentou:
- Noitizinha chuvosa essa, hein amigo?
- É - concordou o homem, com uma voz cavernosa, quieto, lá no canto escuro, - chuvosa e fria como um túmulo de mármore!
Era a gota que faltava para o transbordamento. Com essa resposta, Damião sentiu o coração bater no pé da goela, quase saltando garganta a fora. Agora, para ele, já não mais se tratava de "más impressões". Aquele passageiro era mesmo coisa do outro mundo. Pensou em parar o carro e sair correndo. Desistiu: o mais seguro seria encontrar alguma pessoa e pedir socorro. Apavorado, correu as vistas pela rua deserta à procura de alguém. Não vislumbrou ninguém. Mais de meia-noite, terrível temporal. Quem se arriscaria botar os pés fora de casa...
Mais adiante, a salvação: o quartel da Polícia Militar, no Largo dos Aflitos. Damião pensou com os seus botões: "Entro à direita, como se fosse para a Cidade Baixa e logo embico pra esquerda. Vou brecar em frente do portão central do quartel, onde tem um monte de soldados no plantão. Salto e corro pro meio deles".
Passou pela entrada da ladeira do Tuiuti e, ao aproximar-se do Largo dos Aflitos, pendeu o volante para a sua direita. 

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O passageiro misterioso, ao perceber a pretensa mudança de itinerário, inquiriu, quase autoritário, quase gritando, quase uma ordem, no tom seco da voz:
- EU DISSE, CEMITÉRIO DO CAMPO SANTO!
Damião seguiu em frente, agora com o pavor estampado no rosto, os cabelos da cabeça eriçados e o suor frio a gotejar-lhe pelos sovacos. Sequer tinha mais forças para fazer as mudanças de marchas. O Aero-Willys seguia roncando numa marcha só. 
Damião agora mais parecia um robô humano por trás do volante.
Passou pelo Forte de São Pedro, Hotel da Bahia e, antes de entrar no Corredor da Vitória, dobrou à esquerda, no Campo Grande, deixando a Av. 7 de Setembro. O medo terrível quase não o deixava raciocinar. Porém, era necessário falar algo, dizer alguma coisa. Seu coração batia quase umas 200 pancadas por minuto! Estava na iminência de ter um colapso. Balbuciou, olhando o enorme prédio à sua frente:
- Toda vez que passo por aqui, não canso de admirar e me orgulhar, como baiano que sou, dessa magnifica obra que é o nosso Teatro Castro Alves!
O passageiro opinou:
- Eu me orgulharia mais ainda se essa imensa construção fosse transformada num grandioso mausoléu, para guardar os restos mortais do nosso poeta, para toda a eternidade. 
Damião sentiu um líquido morno escorrendo em abundância por uma das suas pernas, ensopando-lhe a calça, meia e sapato. O taxi entrou no Canela. Quando dobrava a esquerda para pegar a Rua João das Botas, o homem olhou para o lado do Pronto Socorro do Hospital Getúlio Vargas e murmurou:
- É dali que sai muita companhia para mim, no cemitério!
Damião gemeu:
"Minha nossa! Mortos para sua companhia, no cemitério!! Agora só falta mesmo ele cravar suas pressas assassinas no meu pescoço e sugar todo o sangue! Quem sabe esse passageiro é o Drácula e veio dessa tal de Transilvânia conhecer os mistérios da Bahia e agora tá de regresso! Certamente, como no filme, precisa de combustível, quero dizer, de sangue pra voltar! Meu São Judas Tadeu!!"
O Aero-Willys subia a Ladeira do IBIT debaixo de chuva, se aproximando do Campo Santo, zoando na mesma marcha.
Quando Damião, do fundo do seu pavor, ainda pensou que o seu passageiro saltaria normalmente na porta de uma residência qualquer do bairro e que todas aquelas impressões de assombração não passavam de temores infundados, o homem falou, quando o veículo rodava rente ao muro do cemitério:
- Pode parar aí, em frente ao portão.
A chuva prosseguia pesada. Os trovões eram ensurdecedores e os relâmpagos riscavam a noite escura.
Damião parou o carro e ficou estático, como que petrificado, segurando o volante com as duas mãos.
O passageiro abriu a porta e disse, antes de saltar: 
    
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- Espere um momento; vou pegar o dinheiro para lhe pagar.
Disse isso e se encaminhou para o enorme portão central.
Damião, com os cabelos da cabeça arrepiados e os olhos esbugalhados, viu seu passageiro abrir o portão e se perder num grande corredor, entre sepulturas, debaixo de chuva, neblina relâmpagos e trovões! Dessa vez, admitiu ele, não era medo feito pelo seu medo! Dessa vez, transportara mesmo uma "coisa do outro mundo"!!
"UUUUUUAAAAAAAAAAAAAAAAIIIIII!!!"
Seu grito pavoroso ecoou dentro da meia-noite, enquanto arrancava o Aero-Willys a toda velocidade.
Minutos mais tarde chegava na Baixa do Bonfim, sem fala, tremendo, suando frio, se mijando e se borrando por todos os poros e buracos.
Cerca de duas horas da madrugada, uma rezadeira que buscaram às pressas nos Alagados, fez Damião soltar as primeiras palavras e contar, com detalhes, a tenebrosa aventura. Contou tudo sentado na beira da cama, com os pés gelados, dentro de um tacho cheio com água quente.
Dessa vez todo mundo acreditou: realmente Damião, de tanto medo de assombrações fictícias terminou encontrando uma de verdade.
Eram umas três horas da tarde do dia seguinte. Damião folheava tranquilamente o jornal, sentado atrás do volante do seu táxi, no ponto do Terreiro de Jesus. Prometera à mulher, ao sair de casa, jamais passar das 18 horas na rua. A chuva cessara e o sol enxugava a tarde molhada quando, um homem alto, magro, vestido de preto, capa e chapéu também negros, chegou próximo ao vidro arriado da porta do motorista e saudou:
- Boa tarde, amigo.
De longe, muito longe, Damião, olhar distraído no jornal, reconheceu aquele tom de voz. Seus cabelos se arrepiaram. Ao voltar a cabeça e ver o homem ao seu lado, empalideceu repentinamente e PUF!! Se arriou, desmaiado, sobre o volante. Era o "vampiro" que transportara na noite passada. Seus colegas se aproximaram. O homem recém-chegado, segurando algumas cédulas na mão, falou:
- Mas o que tem o colega de vocês?
Um dos motoristas de praça se adiantou:
- O Damião está meio assombrado! Ontem de madrugada transportou um vampiro, um morto vivo, ou foi uma mula sem cabeça...
- Escute aqui amigo - retrucou o homem com ar de indignação, - vampiro, morto vivo, vampiro ou mula sem cabeça é a vovozinha, está bem? Fui eu quem viajou ontem a noite com ele e não sou nada disso!!
Outro motorista inquiriu:
- Mas Damião contou que a assombração, quero dizer, o senhor, mandou ele parar o táxi bem em frente do portão do cemitério e entrou lá dizendo que ia buscar o dinheiro pra pagar a corrida. Vá lá e venha cá meu senhor, pegar dinheiro dentro de um cemitério, meia-noite, é dose! É um troço que não tem explicação!
Mas é claro que tem explicação - se adiantou o homem, - se moro numa casinha lá no fundo, há mais de 30 anos. Eu sou o coveiro do cemitério. Onde iria pegar o dinheiro, senão na minha residência!
Todos os motoristas ali, ficaram mais que boquiabertos. Alguns até já se contorciam, segurando as barrigas para não estourarem de rir. O homem botou as cédulas sobre o painel do táxi e se retirou, resmungando: "Vampiro, morto-vivo, mula-sem-cabeça... Essa não era pra hoje!!"
Naquela tarde, baiano algum conseguiu pegar um carro de praça no ponto do Terreiro de Jesus. Todos os motoristas retiraram seus carros da fila e ficaram em volta do de Damião, esperando ele acordar para poderem gozar com a sua cara.
Foi assim que a estrada ganhou de volta seu dileto "filho Pródigo", seu caminhoneiro arrependido, graças ao "Vampiro do Pelourinho".

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