segunda-feira, 20 de junho de 2016

O Caminhoneiro e o Mendigo



                                                                               
O jovem caminhoneiro Lindomar, estacionou seu caminhão vazio, placa da cidade de Santa Helena de Goiás, na área de um posto de abastecimento da cidade de Barreiras, oeste da Bahia. Passava pouco do meio-dia. Trancou a cabine e se encaminhou para o Bar e Churrascaria. Sentou-se à mesa, de forma que, de onde estava, observava seu caminhão. Um garçom aproximou-se dele indagando:
- Já fez seu pedido, amigo? Temos rodízio e self-service.
- Vou de self-service - disse Lindomar.
- Então esteja à sua vontade. Pode se servir ali no buffet. Vai beber alguma coisa?
- Sim, uma água mineral de meio litro, sem gás.
O garçom se afastou, escrevendo numa cadernetinha. 
Foi nesse instante que o mendigo entrou no salão do restaurante e se dirigiu ao balcão. Apresentava ter mais de oitenta anos. Andava devagar e tinha os cabelos lisos, ralos e grisalhos. A barba também era branca. Usava vestes salpicadas de remendos, sandálias de couro tipo franciscana e, além do embornal feito de tecido de encerado, carregava uma garrafa plástica com água e uma esteira de palhas enrolada debaixo do braço. 
Lindomar olhou atentamente o rosto daquele velhinho e disse pra si mesmo em pensamentos: "coitado, quanta tristeza e sofrimento no semblante desse velho!"
O Mendigo se aproximou do balcão com uma lata vazia de goiabada e pediu para o homem sentado atrás da máquina registradora:
- Senhor podia, por caridade, arrumar um pouco de comida pro velhinho? Pode ser resto. Já estou turvando as vistas de tanta fraqueza. Desde ontem de manhã que não mastigo nada! Venho caminhando por esses chapadões de Deus, desde a cidade de Barra da Prata do Piauí.
Lindomar já ia se levantando para pegar um prato e se servir quando, o proprietário da casa, explodiu com o mendigo, despertando a atenção dos clientes:
- Escute aqui seu andarilho, velho fedorento! Quem lhe autorizou a entrar neste recinto? Estou que não aguento mais esses pedintes, todos os dias, me enchendo o saco e repugnando minha clientela no salão! Ainda ponho um segurança aí na entrada somente pra escorraçar essa raça piolhenta! Garçom - chamou, - bote esse velho pra fora! Você não viu ele entrando? Porque não o expulsou logo? Não sabe das minhas ordens?
Alguns clientes almoçando, apoiaram o homem, torcendo os narizes para o recém-chegado. O mendigo abaixou a cabeça, deu meia-volta e começou a se retirar. O dono do restaurante saiu de trás da caixa registradora, caminhou até a porta da cozinha e disse lá para dentro:

                                                                              
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- Vocês não me deem, aí pelo fundo, um grão de feijão ou um osso de galinha que seja, a pedinte algum. É isso que vicia eles. Quem desobedecer as minhas ordens meto no olho da rua.
Quando o velhinho se aproximava da porta de saída, Lindomar o alcançou. Pôs a mão sobre um dos seus ombros e chamou:
- Meu velho, venha sentar à mesa comigo, pago seu almoço.
O mendigo voltou-se e respondeu:
- Deus lhe pague filho, mas não precisa eu sentar com você. Basta botar um pouco de comida na minha latinha. Como lá fora mesmo. Minhas roupas...  
- Nada disso, meu velho. Deixe de vergonha besta; vamos sentar.
Disse isso, pegou no seu braço e o foi levando para sua mesa. Afastou uma cadeira e o velhinho sentou. Lindomar pegou a esteira, a vasilha com água, a lata e os colocou numa cadeira ao lado. Chamou:
- Vamos ali nos servir, meu velho. Pode pegar o prato e não faça cerimônia. Sirva-se à vontade no buffet de frios ou quentes, como queira.
O proprietário se aproximou:
- Me desculpe meu amigo - disse para Lindomar, - mesmo você pagando o almoço dele, não consinto que coma no salão, vestido como está! Tenha santa paciência, mas olhe o recinto aqui e o aspecto físico desse mendigo! Veja a clientela, seus próprios colegas... Ele faz sua refeição na rua. Você pode pedir uma quentinha.
- Escute aqui senhor - disse Lindomar de forma ríspida, - eu pouco estou me lixando pra sua clientela especial, colegas incompreensíveis ou seu ambiente seleto. O velhinho é meu convidado e vai almoçar aqui comigo nesta mesa. Não vamos comer fiado e sei dos meus direitos! Se o senhor prosseguir com essa insistência em expulsá-lo, ligo pra delegacia e dou uma queixa-crime do seu estabelecimento por discriminação, está bem? 
O homem retirou-se, resmungando, de volta para o seu balcão. Lindomar chamou:
- Vamos, meu velho. Bebe alguma coisa?
- Somente água, filho.
- Respondeu ele, pegando o prato, talheres e começando a se servir.
Lindomar levantou a voz:
- Garçom, a garrafa de água mineral que pedi, traga de litro.
Alguns caminhoneiros e clientes de automóveis olhavam meio atravessados para Lindomar e o mendigo. Minutos depois, ao perceber o prato dele vazio, Lindomar avisou:
- Meu velho, pode ir se servir no buffet quantas vezes quiser.
O mendigo voltou lá e renovou o prato.
Quando terminaram, Lindomar pediu a conta ao garçom e disse:

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- Esse seu patrão é bem nojento, não é? Isso pra não dizer, bem miserável!
O garçom respondeu, pelo canto da boca, enquanto empilhava os pratos:
- E bota miserável nisso! O chibungo velho tem uma fazendas de gado, uma de soja, dois postos de gasolina e é dono de várias casas e apartamentos em Barreiras. Com tudo isso não dá um prato de comida a um cego, um aleijado ou a qualquer necessitado. E ainda humilha, como fez com o pobre velhinho aí. E fica no caixa somente para economizar o salário de mais um funcionário. Gostei de você ter jogado duro com ele! Queria mesmo era que levasse uma tremenda multa por discriminação. Aí eu ia cair na risada. E olha que o miserável velho quase não larga uma bíblia de debaixo do braço! É religioso...
Lindomar sorrindo, pagou a despesa, deu uma gorjeta ao garçom e dobrou algumas cédulas. Feito isso colocou no bolso do paletó surrado do mendigo.
- Tome aí, meu velho - disse.
- Não precisa, filho - tentou recusar.
- Precisa sim e deixe de modéstia. Isso dá pra uns três pratos feitos, aí pra frente.
O velho ficou de pé, Lindomar indagou:
- Não quer ver televisão? É bom a gente se inteirar do que se passa por aí, por esse Brasilzão. Fique mais um pouco e descanse o almoço.
O mendigo pegou a sua esteira, a lata vazia, a vasilha com água e, antes de se retirar, segurou firmemente com a mão direita o ombro esquerdo de Lindomar. Olhou-o fixamente dentro dos olhos e, por alguns segundos, como se quisesse penetrar sua mente,  agradeceu:
- Obrigado, estou indo. Deus é quem há de lhe pagar o que fez por mim, filho!
- Lindomar ao perceber duas lágrimas brotando dos olhos do mendigo, serpenteando pelas faces enrugadas e se emaranhando nos fios de cabelos da barba grisalha, levantou-se e desconversou:
- Deixa de besteira, meu velho. Deixa de besteira.
O mendigo se retirou caminhando devagar, levemente curvado para a frente, como se estivesse sentindo o peso de tantos e tantos anos, sobre o corpo cansado.
Assistindo televisão, vez por outra, Lindomar olhava seu caminhão lá fora. Percebeu também o velho, na área do posto, pedindo carona a um e outro caminhoneiro e carreteiro. 
Todos se negavam a levá-lo. Instantes depois ele sumiu do seu campo de visão.
- Acho - pensou, - que apareceu alguém com um pouco de sensibilidade e o levou. Será que está indo pros lados de Santa Helena? Se viaja naquele rumo, deveria ter-lhe perguntado e lhe oferecido uma carona. É, mas também não ia adivinhar.

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Mais tarde Lindomar mandou lubrificar o caminhão, abastecer e arrumar um defeito no alternador. Ia rodar até altas horas da noite e não podia facilitar com a parte elétrica.
Tardezinha, o sol caindo para o poente, entrou na boleia e reiniciou a viagem. Pouco mais de cinco quilômetros adiante, viu o mendigo seguindo pelo acostamento. Diminuiu a velocidade e parou atrás dele. Saltou e foi ao seu encontro dizendo:
- Meu velho, lá no posto me recriminei por não ter lhe oferecido uma carona. Se bem que não sabia se estava viajando pra esses lados... O certo é que agora sei que está indo no mesmo sentido que o meu. Vou pra Santa Helena de Goiás, onde moro. Então a carona está oferecida até quando der pro senhor.
- Você me leva, filho?
- Ora se levo,meu velho - disse Lindomar, abrindo a porta da boleia. - O mendigo propôs:
- Filho, a carroçaria está vazia, vou lá em cima, mesmo.
Me arrumo num cantinho.
- Sê besta, meu velho. Suba aí na cabine.  
Caminhão viajando, Lindomar puxou conversa:
- Vi o senhor pedindo carona. Ninguém quis lhe trazer, não foi?
- Pois é - respondeu ele, - mas sempre aparece um filho de Deus que procede como você. Ademais, eles tem suas razões. Com esses assaltos e roubos por aí, todo mundo desconfia de todo mundo!
Lindomar retrucou:
- Não é tanto isso não, meu velho. Se fosse uma mulher jovem e bonita que estivesse naquele posto, pedindo carona, duvido se o primeiro ou o segundo, a quem ela se dirigisse, não a levasse! É nessa aí que os colegas quebram a cara.
Faltavam poucos quilômetros para a cidade de Mimoso do Oeste quando começou a anoitecer. Lindomar acendeu os faróis e disse:
- Meu velho, estamos chegando em Mimoso, vamos passar direto e jantar num posto, na entrada da cidade de Roda Velha. Depois tocar pra frente. Quero ver se vamos dormir em Alvorada do Norte, já no Goiás. Saindo amanhã cedo, assim vazio, ao anoitecer estarei em Santa Helena.
Cerca de oito horas chegaram ao posto de abastecimento e restaurante. Lindomar saltou e arrodeou pela frente do caminhão. Abriu a porta e disse:
- Meu velho, deixe aí os troços que não forem necessários e vamos ao restaurante, jantar.
O Mendigo saltou e respondeu:
- Filho, assim já é muita despesa pra você. Basta o almoço do meio dia, os trocados que me deu e  essa sua boa vontade de me levar mais para a frente.  Mesmo, nós velhos, não é bom se empanturrar de comida, à noite!

                                                                              
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- Vamos meu velho - insistiu Lindomar, - se não  quiser jantar, toma uma sopa, come um lanche ou o que melhor lhe apetecer. O importante é não ficar  de estômago oco. É como diz aquele velho ditado: saco vazio não fica em pé e, se algum cliente,  proprietário ou funcionário do bar- restaurante lhe olhar com cara de poucos amigos, devido a sua  aparência, dou logo uns dois coices e eles se aquietam.
O mendigo entreabriu os lábios num leve sorriso. Antes das nove horas partiram pra frente. A lua brilhava no céu.
A menos de trinta quilômetros para chegarem em Alvorada do Norte, Lindomar calcou o pedal de freio parou o caminhão no acostamento e comentou:
- Viu ali na frente, meu velho?  Uma raposa morta ou ferida no meio da pista! Talvez o senhor não tenha percebido, mas quando o farol apontou longe, outro que estava junto dela correu pro mato. Deve ser um casal. Quer ver uma coisa? -
Lindomar apagou os faróis, desligou o motor e ficou em silêncio. Cerca de um minuto depois, os reacendeu. O animal que fugira à aproximação do veículo, ao sentir novamente a escuridão, retornou para onde estava a companheira atropelada. Quando os faróis, de novo iluminaram a pista, ele correu de volta para o mato.
- Meu velho - prognosticou Lindomar, - com certeza é um casal. O ferido está se mexendo, deve estar somente tonto ou com alguma coisa quebrada. Seu companheiro parece angustiado ao vê-lo assim, estendido no asfalto. Vou deixar os faróis baixos acesso e vou lá. Não vejo sinal de sangue.
Desceu da boleia, o Mendigo fez o mesmo. Ao se aproximarem, Lindomar falou:
- Está arquejando. A pancada felizmente não deu pra mata-lo. Deve ter sido automóvel. Se fosse carro grande ele estaria esmagada feito um pastel.
Agachou-se e exclamou apalpando a barriga do animal:
- Meu Deus, é fêmea e está prenha! Os filhotes também não morreram. Estão se mexendo dentro da barriga. Sinto no contato da mão. Tem uma perna quebrada, vamos carregar ela pro acostamento.
Os dois pegaram o animalzinho com cuidado e o retiraram para o lado da pista. Lindomar correu no caminhão e pegou, no gavetão da carroçaria, uma caixa vazia de uva, uma fita isolante e uma faca. Quebrou a caixa e separou duas pequenas tábuas. Já chegou junto do animal e do Mendigo com as duas talinhas prontas.
- Meu velho - pediu, - estire a perninha quebrada. 
Eu ponho as duas tabuazinhas à volta dela e o senhor enrola firmemente a fita isolante.
Com menos de cinco minutos, Lindomar sorriu e comentou:
- Pronto, ficou joia, não foi meu velho? Essa fita isolante é da boa. Não vai desgrudar daí nem com chuva e nem sol. O osso da perninha vai colar.

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Com o tempo a futura mamãe vai roer a fita, mas aí a perna já estará boa - Soltou-a e recomendou. - Vai embora bichinha, parir seus filhinhos, sossegada, na floresta. Muito breve sua perninha estará curada e aí você se vire pra roer esses troços à volta dela.
A raposa, ao invés de ir embora, caminhou, mancando e se enroscou junto da coxa do Mendigo, agora sentado no asfalto do acostamento. Lindomar viu o companheiro dela sair de dentro do mato e pular no colo do velho. Ali também se aninhou.
- Meu velho - exclamou, - isso é incrível! A raposa é um dos bichos mais brabos e arredios do mato. Praticamente ninguém a domestica. Como é que eles, selvagens desse jeito, estão aí aninhados no seu colo feito dois cachorrinhos de estimação?!
O Mendigo, acariciando os dorsos dos animais, apenas elogiou:
- Não são umas gracinhas?
Disse isso e os colocou no chão, recomendando:
- Vão filhos, para suas moradas, descansar.
Lindomar, perplexo, viu o casal de raposas, antes de sumirem no mato, lamberem docilmente o rosto do velho. Indagou:
- Meu velho, você é feiticeiro? Sabe reza pra amolecer animal brabo, é?!
O mendigo respondeu com ar de riso:  
- Digamos que esse velho cansado, com quase 90 primaveras nas costas, sabe e tem dentro dele, de tudo um pouco...
Caminhão viajando, Lindomar comentou:
- Meu velho, como são interessantes as coisas de Deus, não é? Veja bem: a perninha quebrada da raposa, metade balançando solta. No entanto, com algum tempo, o seu organismo, sem possuir cola alguma, deixa ela como quando nasceu. Deus, fez tudo certinho no mundo! Por mais que procuremos, jamais se encontra uma coisa errada, posta no mundo por ele! 
- Você acha, filho? - Indagou o mendigo.
- Ora se acho, meu velho. As vezes até acontecem coisas que julgamos que Ele errou, mas, no fundo no fundo, quando analisamos bem, percebemos que o homem é quem está errado e não Deus. Quer que lhe conte uma dessas coisas, meu velho? É uma piadinha de Deus que se encaixa direitinho no que estou lhe falando...
- Piada de Deus?!
- Sim meu velho, mas não é piada de putaria que eu não sou doido de fazer isso. Escute, um sujeito estava deitado, descansando, debaixo de uma enorme jabuticabeira, olhando lá para cima. Sabe jabuticaba, aquela frutinha preta, brilhosa e saborosa?

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- Sei filho, sei.
- Pois bem, o senhor sabe que a jabuticaba nasce  aos milhares, grudadas na cepa da árvore e não somente na copa como tantas outras frutas, não é?
- É sim, filho.
- Bem, aí o sujeito tirou as vistas do alto e olhou para um pé de abóbora ali ao lado, viçoso e enramado pelo chão do pasto. Ao ver abóboras e mais  abóboras, algumas até com mais de dez quilos, tocou com os dedos o talo frágil da aboboreira,    olhou de novo pro alto e fitou as jabuticabas      miúdas. Disse, balançando a cabeça para os lados,  num gesto de reprovação: "Nessa aí Deus errou feio... e como errou! Ora, como é que Ele botou essas  frutinhas de menos de vinte gramas numa cepa de  árvore dessa que um homem quase não consegue abraçar o seu tronco, e pôs abóboras no chão, com até  mais de dez quilos, seguras por um talo que  podemos quebrar com um dedo mindinho! Deus aí  tem que dar o braço a torcer. Que errou nessa, lá  isso errou. É claro que teria de ser o contrário!"     
Não demorou muito, um passarinho no alto, comendo as frutinhas maduras, deixou cair uma  delas. A jabuticaba foi direto no pau do nariz do sujeito. Tum! Quando ela bateu no seu rosto, ele olhou para as abóboras enormes e deu a mão à  palmatória: "Puxa... não é que Deus está certíssimo!  Se Ele bota essas abóboras lá no alto...”
O Mendigo tentou reprimir o sorriso, mas não    conseguiu. Aí soltou-se numa risada gostosa. Lindomar também sorriu, apesar de já conhecer a historinha há bastante tempo. Adiante, Lindomar    apontou para a frente e disse:
- Olha lá o clarão de Alvorada do Norte. Faltam menos de dez quilômetros para chegarmos. Vamos  pernoitar num posto que tenha telefone. Preciso     fazer uma ligação para casa.
- Em Alvorada, estacionou o caminhão sob a cobertura do posto de abastecimento:
- Meu velho - disse Lindomar, - vou armar minha rede nos grampos do fundo da carroçaria. O senhor pode dormir aí no sofá-cama.
- Prefiro também dormir lá embaixo, na minha    esteira,filho. Já me acostumei a dormir ao ar livre.
Desceram da boleia. Lindomar armou a rede e o Mendigo estirou sua esteira ao lado dela.
- Agora vou ali no telefone público, meu velho. Quer ir comigo e fazer uma merendinha? Já   passa da meia-noite, mas o bar do restaurante ainda está  aberto. Também preciso comprar cartões   telefônicos.
O Mendigo respondeu, sentando-se na esteira e
fazendo travesseiro de um paletó:
- Pode ir, filho. Não quero nada não e que Deus   lhe pague por tanta boa vontade -  disse isso e se  deitou. 


                                                                              
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Cerca de dez minutos depois, Lindomar retornou e sentou-se na rede. O velho percebeu suas feições  tristes. Não demorou muito ele deitou-se e começou a chorar em silêncio, tentava segurar os soluços, mas não conseguia. A rede se estremecia...               
O Mendigo sentou-se na esteira e, por algum      tempo ficou a observar aquele rapaz bondoso se esvaindo em lágrimas.
Já madrugada, começou a acariciar os cabelos de  Lindomar e perguntou:
- O que tens filho? Porque Chora tanto? O que aconteceu e lhe magoa tanto depois que retornou do telefonema? Desabafe com esse velho  calejado que só quer o seu bem.
Lindomar assoou  o nariz, desceu da rede, sentou-se ao lado do Mendigo e disse com a voz  entrecortada por soluços:
- Minha esposa está morrendo, meu velho.
Houve um instante de silêncio. Lindomar prosseguiu:
Ela tem 24 anos, um a menos que eu. Quando a doença foi diagnosticada, há pouco menos de um ano, já estava se alastrando por todo o seu  organismo. Foi operada duas vezes, mas o câncer   reaparece em outros locais. Ontem de manhã liguei pra minha casa. Uma senhora idosa, que mora ao lado e cuida dos nossos filhos, disse que ela sentira algumas dores, mas, após tomar os remédios prescritos, adormeceu. Naquele instante estava dormindo sobre efeito dos remédios fortes.  Durante o dia tentei ligar novamente e não encontrei um telefone que prestasse. Quando   consegui, na hora em que chegamos aqui, dona Marta disse que a Célia foi levada às pressas para o  hospital, antes do meio dia, se contorcendo com  dores atrozes. Falou que, segundo os médicos, seu  estado era gravíssimo. Depois eu liguei pro hospital. O médico que atendeu, me pediu paciência e compreensão. Disse que Célia entrara em estado de coma profunda, inclusive com  morte cerebral     diagnosticada. Falou que seus batimentos cardíacos caíam assustadoramente e que não chegaria ao amanhecer do dia de hoje.
Lindomar, novamente irrompeu em prantos. Depois mais conformado, disse:
- Nós nos amamos tanto, meu velho! Fomos    criados juntos num orfanato. Jamais conheci e nem   soube quem foram meus pais, e nem Célia os pais dela também. Desde pequeninos que nos afeiçoamos um ao outro. Quando algum casal queria nos  adotar, a mim ou a ela separadamente, aí a gente   embirrava. Só iríamos se levassem nós dois. Nunca coincidiu de quererem adotar um casal. Se queriam levar Célia, ela chorava dizendo que só   queria ser adotada se eu fosse junto. Se queriam a mim, aí quem entrava no chororô era eu, porque não queria ficar longe dela.
Então, dessa maneira,   ninguém nos adotou e fomos crescendo. 

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Já grandes, adolescentes, passamos a trabalhar no   orfanato como empregados. 
E foi na nossa adolescência que descobrimos que estávamos   apaixonados.
Aprendi a dirigir numa caminhonete  do orfanato e tirei habilitação. Mais tarde casamos e fomos Morar Numa Casinha na cidade de Santa  Helena de Goiás. Aí vieram os dois filhos e, logo  depois, a terrível doença. Nosso hominho está com cinco anos e a mocinha com três. Se adivinhasse dessa recaída dela, tomaria uma licença no trabalho. Ficava ao seu lado. Mas sou empregado e não posso escolher, na empresa, para onde devo carregar. Também preciso de dinheiro e emprego, para rodar somente lá pelas redondezas é muito difícil. Sem contar que os remédios   pro seu tratamento, são caríssimos! Estou retornando vazio, mesmo contra a vontade do patrão, para não ficar muito tempo longe de casa. E aí recebo essa terrível notícia.
Novamente  irrompeu em lágrimas lamentando:
- O médico pediu que eu ligasse novamente ao amanhecer.
Disse que se todas as previsões se concretizarem, o corpo de Célia estará a minha espera   no necrotério do hospital para ser retirado.
Disse isso e voltou a deitar-se. O mendigo passou toda madrugada sentado ao seu lado, silencioso,    observando-o. Os galos cantando, Lindomar que não conseguia conciliar o sono pediu:
- Meu velho, se deite e durma um pouco. Descanse.
O mendigo nada respondeu. Rezava silenciosamente. Quando o dia começou a   raiar, o velho recomendou:
- Filho, vai dar o seu telefonema. Já está  amanhecendo.
Trêmulo, Lindomar sentou na rede e balbuciou temeroso:
- Eu tenho medo, meu velho. Eu tenho medo de não aguentar! A amo tanto, tanto...
- Não tenha receio, filho. Por toda madrugada eu rezei para sua esposa. 
Segurou na mão de Lindomar e chamou: 
- Levante-se e vamos. Confie nesse  velho.
Caminharam até o telefone. Lindomar não conseguiu, com a mão trêmula, introduzir o cartão  no aparelho. O mendigo tomou-o da sua mão e o colocou ao mesmo tempo em que pegava o fone e dizia:
- Filho, disque para o hospital onde se encontra a sua esposa.
O velho entregou-lhe o aparelho e a seguir, encaminhou-se de volta para o caminhão. Pegou sua esteira, enrolou-a e foi apanhar o resto das suas   coisas na boleia. Antes de Partir, caminhando pela  estrada, deu uma última olhada para Lindomar. Ele terminava de conseguir a tão esperada ligação...
- A, alô, é do Hospital de Santa Helena de Goiás?
"Sim" - respondeu a telefonista.

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- Senhora, aqui é o esposo da paciente Célia Conceição. Estou ligando de Alvorada do Norte. Ontem à noite, o Dr. Jerônimo...
"Sr. Lindomar - interrompeu a telefonista, - o diretor do hospital quer falar urgentemente com senhor. A sua esposa pôs todo o hospital em    polvorosa! Uma junta médica... um momento, Dr. Jaime está chegando aqui. Vou passar o fone   para ele. É o marido de dona Célia, Dr. Jaime."
"Alô, senhor Lindomar?"
- Sim Dr. Jaime o seu colega, Dr. Jerônimo, ontem à noite, mandou que eu ligasse ao amanhecer. Pelo que ele falou, minha mulher não passaria de...
"Meu amigo - cortou o diretor do hospital, - se está de pé, procure sentar-se para não cair, depois de ouvir o que tenho a dizer!"
- Eu já estou psicologicamente preparado, Dr. Jaime...
"Não está não, meu amigo. Pois a partir da meia-noite ouve uma incrível e inacreditável reversão no quadro clínico da sua esposa que está nos deixando estarrecidos. A doença da sua mulher desapareceu  totalmente do seu organismo, como que por encanto. Até cicatrizes de operações anteriores, sumiram da sua pele! A sua morte cerebral já havia sido diagnosticada. Uma junta médica, durante toda a
madrugada, Só faltou virá-la ao avesso e não encontrou mais vestígio algum da doença que lhe acometia. Estamos diante de uma situação ímpar, aqui em Santa Helena. Mandamos uma viatura a    sua residência e trouxemos seus dois filhos e a  senhora que cuida deles. Ás 8:00 dona Célia estará liberada para ir embora. Um momento, sua esposa está chegando com as crianças. Estavam passeando  pelo jardim. Vou passar o fone para ela. É seu  marido senhora Célia..."
"Alô, é você meu amor? O que foi que aconteceu comigo? A doença sumiu. Os médicos,   aqui no hospital, estão como loucos. Disseram que  não encontram uma explicação, a luz da ciência médica, para este fenômeno. Até as cicatrizes de outras operações, também desapareceram do meu corpo. Como pode ter acontecido isso, meu amor? Um momento, as crianças querem falar com você."      
"Papai, papai, é sua Aninha! Mamãe não vai  mais     morrer, não vai! Quando você chega? Venha  depressa! Vou passar o fone pro Carlinhos!" 
"Papai, é Carlinhos. Venha logo, mamãe ficou boa! Venha depressa!"
Lindomar chorava segurando o fone. A esposa falou
novamente: 
"Onde você está querido, quando chega?!
Estou em Alvorada do Norte, meu amor. À noite, se Deus quiser estarei aí. Preciso desligar, eu   tenho a resposta para esse seu fenômeno. É um velho mendigo que está viajando de carona  comigo.

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- Um velho?!
- Sim querida, dei carona para ele desde a cidade de Barreiras, na Bahia.
É um velho estranho. Quando ele olha dentro dos  olhos da gente, sentimos uma sensação sublime invadir nosso corpo! Animais selvagens se aninham docilmente no seu colo. Ele disse que rezou por você durante toda a madrugada. Houve um milagre nesta sua cura e ele é o responsável. Vou desligar, preciso dar essa notícia para o velho. Mais tarde eu ligo pra casa.
Pôs o fone no gancho e disparou de volta, para o seu     caminhão, gritando feito um maluco:
- Meu velho, meu velho, suas rezas, suas orações...
A esteira não estava mais junto a rede. Um colega ao lado, parou de escovar os dentes e disse:
- É um velho Mendigo? Saiu caminhando pelo asfalto, aí pros lados de Planaltina:
Correndo, Lindomar o alcançou:
- Meu velho - disse, - o senhor não imagina o que aconteceu! Minha Mulher daqui a pouco recebe alta do hospital e vai pra casa. A doença dela, por mais incrível que possa parecer, regrediu totalmente do seu organismo! Até cicatrizes de operações que fez anteriormente, sumiram também do seu corpo. Foram suas rezas,  suas orações, meu velho! Foi isso, Deus lhe ouviu! Ele é quem há de lhe pagar por tudo, meu velho... E porque veio embora, porque saiu assim e não me esperou? 
O Mendigo fitou Lindomar dentro dos olhos. Este segurou-lhe  firmemente os ombros e  propôs:
- Meu velho, minha casa em Santa Helena de Goiás tem três quartos e um está sempre vazio. Venha morar com agente. Você vai ser o pai e avô que eu e minha mulher não tivemos. Lá não vai lhe faltar nada. Você será uma esplêndida companhia  para meus dois filhos e minha mulher,  quando eu estiver viajando. Aceite essa minha proposta meu velho e pare de ser humilhado, implorando pelas portas por um pouco de resto de comida e dormindo pelas sarjetas. Eu lhe cuidarei por todo o resto da sua vida, meu velho. Venha comigo,  venha meu velho...
O mendigo deixou a esteira cair no chão, abriu os braços e disse:
- Obrigado filho. Mas eu sempre estive, estou e sempre estarei ao lado de você e da sua família.
Estupefato, Lindomar viu as roupas remendadas  do mendigo irem se transformando em vestes alvas e resplandecentes.
- Filho - prosseguiu, - este mendigo a quem você   saciou a fome e levou para mais adiante no seu  caminhão, é Jesus de Nazaré.
Lindomar postou-se de joelhos, cruzou os braços  sobre o peito e disse com lágrimas escorrendo-lhe  pelas faces:

                                                                              
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- Meu Pai, este humilde e rude  caminhoneiro  não é digno de tão divina graça. Nessa minha vida nômade de vai e vem pelas estradas, quase não frequento suas igrejas, seus templos. Não sei um    único versículo do teu livro, a bíblia. Porque dispensastes a mim, tão misericordiosa graça,       Senhor? Porque?!
- Você filho - disse-lhe Jesus, - se preocupou em   saciar a fome de um necessitado. Se apiedou e cuidou de um animalzinho ferido. Isto para mim, tem mais valor do que o homem passar cem anos  de sua vida frequentando templos, levando uma  bíblia debaixo do braço e jamais ter praticado   ações sublimes e misericordiosas como as que você praticou ontem... Agora, levanta-te filho - disse-lhe  Jesus, - pega o teu caminhão, toma o rumo da tua casa e vai cuidar da família que tanto ama.
Ele suspendeu o braço direito e, com gestos suaves prosseguiu:
- Eu te abençoo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
Boquiaberto, embevecido, o Caminhoneiro Lindomar viu aquela imagem de Luz Suprema ir se desvanecendo e suavemente desaparecer. Ainda de joelhos, Ergueu os braços para o céu e clamou emocionado por três   vezes:
- Meu Pai, meu Pai, meu Pai...
O sol começou a despontar no horizonte de Alvorada do Norte. Seus raios luminosos ainda     encontraram aquele caminhoneiro, postado de joelhos no acostamento, chorando copiosamente, abraçado a uma pequena esteira.

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