domingo, 5 de junho de 2016

Coisas de Deus







Passava da meia-noite. Uma chuva torrencial desabava há dias por quase todo estado das Minas Gerais. O limpador do pára-brisa, quase não dava vencimento a tanta água, no seu incessante vai-e-vem. 
A carreta, com 27 toneladas de carga, deslizava pelo asfalto alagado. Trovões ensurdecedores e relâmpagos com a intensidade da luz do dia, se sucediam quase de forma ininterrupta. Joana comentou, apreensiva, para o companheiro ao volante:
- Alberto, estou com medo. Será que se parássemos um pouco até...
Alberto, segurando o volante com firmeza, interrompeu num tom  de voz crítico:
- Joana, você precisa aprender a não temer as coisas de Deus! Respeitar sim - acentuou, - porém temer, jamais.
- Não é da chuva relâmpagos e trovões que estou falando, Alberto - respondeu ela, - é da estrada. O asfalto e acostamentos é tudo água! As pontes por onde passamos, estão sendo submersas pelas correntezas!
- Joana - disse Alberto, passando uma flanela no pára-brisa, desembaçando parte dele, - se previsse que a chuva se transformaria nessa tempestade violenta, teríamos parado pra dormir em Engenheiro Caldas. Mas não se preocupe, conheço bastante esse trecho. Está perigoso, reconheço, porém mais perigoso ainda é parar nesse acostamento duvidoso ou no meio da pista, onde algum carro pode enfiar a cara aí na traseira. Governador Valadares está a pouco mais de trinta quilômetros. A melhor solução mesmo, é tocar pra lá.
Houve uma breve pausa; Joana comentou:
- Sabe Alberto, você transmite segurança.
O carreteiro ensaiou um sorriso e disse:
- Joana, em qualquer situação, seja ela qual seja, alguém tem de ter calma, cabeça fria, do contrário o mundo explodiria.
De repente, após atravessar uma pequena ponte, dentro de uma curva, Alberto crispou as mãos no volante e, numa fração de segundo, calcava o pedal de freio enquanto sua companheira levava as mãos ao rosto e exclamava, quase em pânico:
- Meu Deus, meu Deus!!
Uma mulher, cerca de trinta metros à frente da carreta, no meio da pista, ferida no rosto e sangrado por todo o corpo, agitava os braços sobre a cabeça, com gestos desesperados.
Joana, agora quase de pé, com as mãos sobre o painel, começou a gritar:
- Pelo amor de Deus, saia da frente, saia da frente! Vai dar pra dar pra parar, Alberto?!
Alberto nada respondeu. Além de calma, experiência profissional e sangue frio, ele precisava também de muita sorte para brecar aquela carreta dentro de uma curva molhada, sem tombar e nem atropelar a mulher que não arredava pé do meio da pista, agitando os braços. A carreta chegou a derrapar e parou, rente ao acostamento, a menos de dois metros da mulher.

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Alberto travou o freio estacionário, ligou o pisca intermitente, deixou os faróis baixos acesos e saltou rapidamente. A mulher, antes que ele dissesse algo, apontou para a grota escura e disse, quase gritando:
- O meu filho, o meu filho! Há uma criança de colo, dentro do automóvel, prestes a se afogar! Salve-o, salve-o em nome de Deus!!
Alberto pegou a lanterna e correu para a borda da grota por onde o carro despencou, deixando o capim ligeiramente amassado, junto de uma enorme árvore. "É - disse para si mesmo em pensamentos, - se a mulher não subisse na pista para avisar, ninguém ia adivinhar que desceu carro por aqui!" 
Quando apontou o foco de luz para baixo, viu o veículo arrebentado a uns vinte metros, no fundo da grota. Um relâmpago forte e breve lhe possibilitou fazer um apanhado superficial das adjacências. O barranco era muito alto e teria de contornar a cerca pelo pasto, até encontrar uma parte mais baixa. Isso levaria muito tempo. O carro já estava parcialmente submerso. Correu de volta para a carreta e avisou: 
- Joana, vou descer por uma corda. Tenho de amarrá-la num galho dessa árvore aí.
- Não é perigoso, Alberto?
- É sim, mas praticamente não tenho alternativa, outro caminho pra chegar ao carro. O pasto está alagado e, se demorar muito a criança, se ainda estiver viva, acabará morrendo afogada.
Em seguida levantou o sofá-cama e pegou a reserva da corda. Pediu:
- Joana, depressa, venha clarear o galho onde passarei a corda. Traga também um lençol. Vou amarrá-lo em mim para trazer a criança e me manter com os braços livres.
Em seguida fisgou a corda no galho, meteu a lanterna no bolso, colocou o lençol por dentro da camisa e começou a descida, apoiando precariamente as pontas dos sapatos no barranco escorregadio. Lá embaixo levou o foco de luz em volta do veículo quatro portas, que se precipitara de frente. Tentou e não conseguiu abrir nenhuma das portas do lado direito. Os dois vidros delas estavam quebrados. "A mulher deve ter saído, com sacrifício, pelo vidro quebrado, pois as portas do lado esquerdo estão quase submersas. Ninguém foi jogado para fora. A criança tem de estar aí" - pensou.
Evitou olhar o corpo inerte do motorista, esmagado entre o encosto do banco o volante e o painel, vez em quando, iluminado pela claridade dos raios.
De repente, um choro débil. Depressa clareou o lastro do banco traseiro. A criança, menos de um ano de idade, estava por baixo do assento, o rostinho quase coberto pela água barrenta. Alberto botou a lanterna no bolso, meteu os ombros onde o vidro fora quebrado, afastou o banco e pegou a criança pelos calcanhares, puxando-a para fora.

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Com ele nos braços, disse em voz alta, após apalpá-lo e sentir que, salvo alguns arranhões, nada estava quebrado: "É, meu neném, mais alguns minutos e você estaria morto. Sua mamãe chegou mesmo à tempo, lá em cima. Com certeza arrodeou  a cerca pelo pasto."
Disse isto e segurou a criança com o braço direito. Para tirar dúvidas, estirou o braço esquerdo para dentro do automóvel até encostar o dorso da mão à altura do coração do motorista. Ao primeiro contato confirmou, pelo volume do seio, tratar-se de uma mulher. Confirmou também, pesaroso, que por trás dele nada mais pulsava.
Pegou a lanterna e focalizou as pernas da vítima. Estavam quebradas e a água já cobriam seus joelhos. Correu a luz por todo corpo mutilado e, quando focalizou o rosto, Alberto empalideceu. Um frio aterrorizante percorreu todo seu corpo e a mão segurando a lanterna começou a tremer. Quis mover-se, porém não teve forças. Uma sensação estranha de terror o dominou, pregando-o ao solo.
Somente o instinto fazia com que segurasse a criança.
"Santo Deus!! Não posso acreditar no que estou vendo, não posso!!"
Tentou mover-se dali; não conseguia. Quanto mais olhava o rosto daquele corpo, mais aterrorizado ficava. Recriminou-se a si mesmo, em voz alta:
"O que é isso, Alberto? Há pouco lá em cima, você admoestava sua companheira, por julgá-la temente das coisas de Deus. Agora você está participando de um dos mistérios de Deus aqui na Terra e, ao invés de sentir-se horado com tamanha dádiva, fica aí aterrorizado, quando tem uma criança ferida nos braços a qual terá de levá-la daqui, o mais depressa possível".
A voz de Joana ecoou com os trovões:
"Albertôooo, estou ouvindo choro de criança! Está tudo bem? Respondaaaaa..."
Alberto saiu do torpor. deitou a criança por alguns segundos sobre o capim, onde a água não chegava e amarrou duas pontas do lençol por traz do pescoço e, as outras duas pelas costas, na altura da cintura. Pegou o bebê e o colocou entre sua barriga e o lençol. Gritou para o alto:
- Joaaaaana, está tudo bem. Vou subir, fique na beira do barranco para me ajudar com a criaaançaaa...
Enquanto subia, com dificuldade, evitou pensar no corpo dentro do automóvel.
Joana pegou o bebê e correu para a cabine. Alberto tirou a corda da árvore e a colocou no gavetão da carreta. Antes de se dirigir para a cabine, foi até a beira do acostamento, olhou o fundo da grota escura, benzeu-se, cruzou as mãos sobre o peito e murmurou, contrito:
"Obrigado meu Deus, obrigado minha senhora, obrigado por terem escolhido este humilde carreteiro para lhes servir!"
Correu para a cabine. Joana trocara o vestido molhado e segurava a criança que não mais chorava. Alberto tirou a roupa molhada e vestiu uma enxuta. 

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Ao sentar no banco, a mulher exclamou, preocupada: 
- Alberto espere, o que está fazendo? Você não vai deixar a mãe dele aí, não é? Ela está lá embaixo, desceu também pela corda, logo depois de você!
Alberto desligou o pisca intermitente e ligou a seta para a esquerda. A companheira insistiu nas súplicas:
- Alberto, pelo amor de tudo quanto é santo, desligue esse motor. A mãe dele está ferida, precisa de ajuda, está lá embaixo. Você está estranho! Ela precisa de ajuda!!
Alberto olhou meigamente para a criança nos braços da companheira, ensaiando um cochilo. Voltou-se para a esposa e disse, com a voz serena, em meio aos relâmpagos, ribombar dos trovões e o crepitar dos pingos da chuva sob a chapa do teto da cabine:
- Joana, a mãe dessa criança, aquela mulher que ensanguentada, no meio da pista, fez parar a carreta para que salvássemos seu filho está morta, esmagada entre as ferragens do automóvel, de uma maneira tal que, somente os bombeiros, com muito sacrifício, conseguirão retirá-la de lá. Vamos procurar a Polícia Rodoviária Federal de Governador Valadares.
Joana, com a expressão completamente atônita, disse, levando suavemente a criança de encontro ao peito:
- Mas nós a vimos, Alberto! Ela fez parar a carreta, falou conosco... Deus do céu!!
Alberto reiniciou a viagem, tempestade a dentro. Sua voz soou pausada:
- Joana, nós carreteiros e caminhoneiros, muitas vezes somos testemunhas de coisas incríveis, coisas inacreditáveis... Coisas de Deus, em meio a essa vastidão de estrada sem fim.

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