segunda-feira, 20 de junho de 2016

O Caminhoneiro e o Beija - Flor

Em mais de 50.000 histórias enviadas de todo Brasil, para o segundo "Concurso Literário Nacional Alpargatas de Histórias das Estradas", versão 1985, promovido pela  São Paulo Alpargatas e o apoio das  revistas "O CARRETEIRO" e "5ª RODA" [as duas publicaram a história], dentre as dez finalistas,  "O Caminhoneiro e o Beija-Flor" foi primeiro lugar.

São Paulo, 1985

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Se quiser falar ao coração do homem, há que se contar histórias. Dessas onde não faltem animais, Deuses ou personagens e muita fantasia, porque é assim, suave e docemente que se despertam as consciências 
La Fontaine
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Na década de 40, mais precisamente no final dela, um crime bárbaro revoltou o estado de Sergipe. Tivesse ocorrido nos dias atuais, com esses fantásticos meios de comunicação, o Brasil inteiro seria abalado com a terrível crueldade praticada por dois assassinos perversos. Eles mataram covardemente para roubar, um pacato caminhoneiro, pai de família. Por mais incrível que possa parecer, o cadáver foi encontrado estocado com mais de 120 facadas. Como se não bastasse, arrancaram seus órgãos genitais e jogaram sobre seu corpo. Queriam com isso disfarçar o motivo do crime, e conseguiram. As investigações se direcionaram para o lado passional. Assim ficaram livres para continuar com suas vidas de crimes e roubos por aquela região.
Só que, devido ao testemunho de um pequenino beija-flor, os dois criminosos foram levados aos bancos dos réus e condenados à pena máxima.

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O caminhoneiro Natalício, com o seu caminhão, saiu da cidade de Simão Dias, feliz da vida. Naquele sábado, na feira, vendeu todos os 100 sacos de farinha que levou e retornava para a sua cidade natal, Salgado. Transportava mais de trinta passageiros. Quase todos iam na carroçaria, sentados em bancos de tábuas, inteiriços, sob uma cobertura de encerado que cobria toda a parte de cima. Na cabine viajavam dois desconhecidos, bem falantes. Disseram serem caixeiros viajantes [na época, uma especie de vendedor]. Pagaram mais pelas passagens, mas exigiram viajar na cabine.
Salta um passageiro aqui, outros mais à frente... Quando chegaram ao povoado de Água Fria, no caminhão só restaram os dois passageiros, ao lado dele. 
Alguns quilômetros adiante, quase avistando a cidade de Salgado, um deles pede para ir ao mato. Ao parar o caminhão, Natalício teve uma enorme peixeira encostada na sua axila direita.
Em seguida, pegaram cordas na carroçaria e o levaram para o mato. Aproximava-se das seis horas da tarde, o sol quase desaparecendo no poente. Natalício entregou todo o dinheiro da carga de farinha e implorou para levarem também o caminhão, mas não lhe matasse. Tinha mulher e filhos.

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Um deles o amarrou  num tronco de árvore, distante da estrada de chão batido e o outro começou a esfaqueá-lo. Entre gritos implorando piedade, o caminhoneiro Natalício não entendia o porque daquela crueldade. Já lhe tinham estocado o corpo dezenas de vezes e, deliberadamente, não acertavam um órgão vital! Por que fazerem-no sofrer tanto?
Nessa época, existia na cidade de Salgado, como ainda existe em várias cidades do interior, um serviço de alto-falantes fixos, espalhados pelos postes, praças e ruas centrais. Às seis horas em ponto, num gesto respeitoso, os homens tiravam os chapéus da cabeça e as mulheres se benziam, ao ter início a música sagrada da Ave Maria. Os acordes da melodia divina invadiu a pequena cidade e, pela mata, chegou aos ouvidos da vítima e seus algozes. O caminhoneiro, sendo esfaqueado e lavado em sangue, ao ouvir a musica sagrada, olhou para o céu e começou a rezar. Sabia que, em questão de segundos ou minutos, estaria morto. Principalmente depois que um dos agressores, num golpe certeiro, arrancou-lhe toda a genitália. A hemorragia era intensa, e o sangue descia pelas virilhas.
- Ave Maria cheia de graça...
Um dos malfeitores interrompeu seu princípio de oração, desfechando-lhe um soco com tamanha violência que lhe quebrou o nariz e alguns dentes frontais.
- Isto, seu palhaço, é pra você não pronunciar o nome de puta aqui, ouviu bem?
O caminhoneiro, com as lágrimas misturando-se ao sangue no rosto e ainda olhando para o alto, percebeu a aproximação de um colibri. Ele pairou no ar, como que observando aquela cena.
Natalício, já com os olhos embaçando, balbuciou:
- Vocês vão pagar pelo que estão fazendo comigo!
Um deles parou de esfaquear e sorriu sarcástico:
- É mesmo, seu palhaço? Você esquece que estamos sozinhos aqui na mata. Este vai ser um crime perfeito. Por isso essa demora em lhe mandar logo pro inferno.
O caminhoneiro, sempre olhando para o alto e quase sem mais forças para falar, disse, num fio de voz:
Aquele beija-flor ali no alto será a minha testemunha, ele levará vocês ao banco dos réus. 
Os criminosos olharam para cima e perceberam o colibri pairando no ar, as asas invisíveis, olhando para eles.
Um dos malfeitores disse, impaciente:
- Acerte o coração desse nojento e vamos acabar logo com isso!
Natalício, pressentindo seu fim iminente, balbuciou para a pequena ave:
- Adeus amiguinho, você é testemunha de tudo!
A última facada ultrapassou o coração e a lâmina foi cravar no tronco de umbaúba, onde estava amarrado. 

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Lá mesmo a deixaram. Natalício sequer teve forças para gritar. Seu corpo apenas se estremeceu num último estertor.
O beija-flor se assustou e desapareceu junto com os acordes da Ave Maria.
Os criminosos se afastaram sorrindo e levando o caminhão. Um deles ainda zombou, gritando para o alto:
- Olha lá seu beija-flor, vamos esperar você procurar o delegado da cidade e nos acusar. Ah, ah, ah, ah.
Os dois riam às gargalhadas, enquanto manobravam o caminhão. Ao amanhecer do dia seguinte, um morador da cidade, procurando na mata um animal desgarrado, encontrou o corpo mutilado do caminhoneiro Natalício. Como previram os criminosos, todas investigações sobre aquele crime, só bandeavam para o lado passional. Um delegado especial da capital, Aracaju, foi designado para assumir as investigações. Ele vasculhou todo estado de Sergipe, parte da Bahia, Pernambuco e Alagoas, à cata de um pai com uma possível filha seduzida, desonrada por aquele caminhoneiro, ou um marido com a sua honra ferida. Era comentário geral: "Só pode ter sido crime passional. Quem se prestaria a praticar tamanha crueldade, somente para roubar! A barbaridade, sumiço do dinheiro e o roubo do caminhão, certamente foi uma artimanha de um pai ou um marido traído, 'lavando' sua honra e direcionando as investigações para outro lado!"
Passaram-se meses e esse crime horroroso foi sendo esquecido. Jamais se encontrou pista alguma que levasse aos criminosos. O caminhão nunca foi encontrado. Todas as economias de Natalício, foram empregadas na compra da carga de farinha. Sem dinheiro e caminhão, a viúva passou a sobreviver, com os três filhos menores, do rendimento de uma rocinha ao lado da sua residência e lavando roupa de ganho, no rio da Olaria.
Quando, por um acaso, acontecia outro crime bárbaro pela região, é que relembravam o "crime do chofer", a como se referiam na época e com comentários pesados: "Crime horrível foi o assassinato do chofer de caminhão, Natalício! Foram mais de 120 facadas e ainda lhe arrancaram toda genitália!" 
Passados  mais de dois anos desse crime, o senhor Antonio Cardoso, próspero fazendeiro da cidade, semanas antes das eleições, patrocinou um dos maiores churrascos, jamais visto por aquelas bandas. Para se ter uma ideia da magnitude dessa festa, até o candidato a governador do Estado de Sergipe, Dr. Leandro Maciel, a quem o fazendeiro apoiava, estaria presente. Dois garrote [bois], cinco porcos e cinco carneiros foram abatidos. A fazenda do senhor Totonho, nos arredores da cidade estava apinhada de 
políticos, fazendeiros e o povaréu da região. 

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Desde as dez horas da manhã que as valas churrasqueiras, cavadas no chão, abasteciam os convidados e não convidados. Garrafas de cervejas, vinhos, e refrigerantes, gelavam em dezenas  de tambores com gelo e pó de serragem. A comida e a bebida, rolavam com fartura.
À noite, na praça principal da cidade, haveria comício e baile público, animado pelo fenômeno sertanejo da época, o saudoso Luiz Lua Gonzaga.
Senhoras elegantes aproveitavam o evento para vestir suas melhores roupas e exibiam joias caríssimas. Os homens também não deixavam por menos. Faziam questão de mostrar suas carteiras rechonchudas de cédulas e usavam relógios valiosíssimos, presos no bolso frontal da calça, seguro por correntes de prata, outras até de ouro. Era comum, naquela época, esse exibicionismo. 
Entre toda aquela gente, encontravam-se os dois assassinos do caminhoneiro Natalício. Eles souberam da festa pública e sabiam também que, dezenas de fazendeiros e políticos abastados, com seus familiares, estariam presentes ostentando o que tinham de mais valiosos. Não se enganaram. Bem vestidos, bem falantes, eram facilmente vistos como pessoas de bem. Planejaram agir à noite. Seria mais fácil. Um deles disse para o outro: 
- Esse será um golpe para a nossa aposentadoria
Tardezinha, os dois procuraram um banheiro para aliviar as bexigas. No primeiro, uma enorme fila e no segundo, outra maior. Após percorrer os quatro sanitários do casarão, resolveram ir caminhando para o fundo da enorme residência onde tinha um imenso cafezal. Ali poderiam urinar sossegados. A cerveja lhes ardia no pé da barriga.
Afastaram-se da casa até onde não mais fossem visto pelos que estavam no varandado do casarão. Pararam e começaram a se aliviar junto de um enorme pé de café.
O menino Carlito, olhos maiores que a barriga, desde 
cedo que se empaturrava de tudo o que encontrasse pela frente. Não era todo dia que aparecia em Salgado, uma fartura daquela de comida, bebidas e de graça. O resultado é que sua barriga começou a dar voltas meio estranhas por dentro. Correu para os banheiros e se deparou com filas em todos eles. Não pensou duas vezes. Correu pelo cafezal e se agachou, com a calça curta arriada, por trás de uma grande moita de capim, junto a um pé de café. 
Quando terminou, limpou-se e, ao começar a levantar-se para vestir a calça, ouviu vozes de pessoas se aproximando. Abaixou-se e ficou quieto, com vergonha que o vissem naquela posição humilhante.
A pouco mais de cinco metros dele, os dois assassinos pararam e começaram a fazer suas necessidades. Quando terminaram, um deles e logo após o outro, olharam para o alto ao ouvirem um estranho zumbido.

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Era um pequenino beija-flor que, pairando no ar, observava com seus olhinhos miúdos, os dois assassinos do caminhoneiro. Um deles sorriu e perguntou para o outro:
- Diga do que lembrei agora, quando vi esse beija-flor aí?
O outro respondeu:
- Ora, mas que pergunta idiota! É claro que lembro daquele caminhoneiro que matamos, um tempo aí pra trás, aqui perto, com mais de cem facadas.
O menino gelou por trás da moita de capim. Estava distante do casarão e, se aqueles homens o visse ali, depois do que acabou de ouvir, podia se considerar um menino morto - pensou ele. - Se estava quieto, mais se aquietou. O colibri continuava pairando no ar, sempre olhando para aqueles dois homens. Antes de retornar, um deles levantou as vista para o alto e zombou:
- E aí, seu beija-florzinho de merda, o caminhoneiro, antes de morrer, disse que um de vocês seria a testemunha do crime e nos levaria ao banco dos réus. Até hoje estamos esperando vocês procurarem o delegado e nos denunciar!
Sorriram e foram se afastando. O outro ainda fez pouco:
- E não esqueça de, no dia do julgamento, dar uma chegadinha no fórum para assistir as nossas condenações. Ah, ah, ah... 
O menino ouviu as vozes se distanciando. Confirmou olhando pelas frestas das talas do capim. Os dois seguiram para o casarão, caminhando devagar, descontraídos, conversando, sorrindo.
Carlito vestiu a calça e, a passos rápidos, quase correndo, seguiu em diagonal até a cerca lateral e de lá, para o fundo do casarão onde se misturou com o povo, à espera dos criminosos. Eles chegaram e foram pegando espetos de carnes na churrasqueira farta e nas mesas, copos de bebidas. O menino gravou bem suas feições, vestes, seus tipos... Em seguida, de forma discreta, procurou seu pai e os mostrou para ele. Contou o que ouviu no cafezal. Dali partiram para a delegacia.
Minutos mais tarde, o delegado acompanhado de quatro soldados fortemente armados, discretamente dá ordem de prisão para os dois criminosos. Na delegacia foram postos numa sala, frente a frente com o menino. Este relatou, minuciosamente, a conversa que ouviu no mato. A princípio eles negaram, dizendo serem prósperos negociantes na capital. O delegado foi incisivo:
- Escutem aqui vocês dois: vou mandar agora mesmo, o meu ajudante ao  Instituto Criminalista de Aracaju e trazer a peixeira do crime e o laudo pericial com as impressões digitais do assassino, tiradas do cabo da faca. Um perito virá para confrontar essas impressões com a de vocês.
Os dois empalideceram. Um se adiantou e, com a voz trêmula, disse sob protestos do outro:

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- Não precisa essa trabalheira toda não, Dr. delegado, agente confessa tudo.
No dia do julgamento, a cidade de Salgado parou, literalmente. Pessoas de localidades por onde o caminhoneiro Natalício passou, deixando um rastro de amigos, chegavam de toda parte para presenciar e saborear a condenação daqueles cruéis criminosos. Vinham em caminhões, motocicletas, automóveis, lombos de animais, bicicletas e muitos a pé. A praça do Fórum, à volta do prédio, estava apinhada de gente. Dentro do salão, desde cedo que a plateia superlotava os assentos.
Quase no final do dia, os dois foram considerados culpados, por unanimidade, pelo corpo de jurados. Já escurecendo, quase seis horas, o juiz lavra a sentença. Os dois assassinos do caminhoneiro Natalício, são condenados à pena máxima a ser cumprida em regime fechado, na penitenciária do Estado de Sergipe. Lida a sentença, a plateia levanta-se e, emocionada, começa a bater palmas, dando vivas à justiça.
Seis horas, o sino repica na torre da matriz. O serviço de alto-falantes da cidade, como sempre, nessa hora, começa a tocar a música da Ave Maria, na voz do saudoso Vicente Celestino. Os acordes invadem o recinto do fórum onde a plateia prosseguia batendo palmas e enaltecendo a justiça. 
Junto com os acordes da música sagrada, entra voando, por uma das janelas, um pequenino beija-flor. É comum, principalmente nas roças e fazendas, o colibri entrar numa residência, voar rapidamente pelo seu interior e logo ir embora. É Crença que aquilo traz sorte para os da casa. Mas o beija-flor que adentrou ao Fórum, procedeu de forma estranha. Ele revoou pelo enorme salão e pairou no ar, junto da parede, onde se encontrava uma pequena escultura da Virgem Maria. À frente dela, um jarro de flores que a zeladora se encarregava de renovar todos os dias.
A primeira impressão era que a pequena ave fora ali para sugar o néctar  das  flores. Mas não o fez. Apenas limitou-se, por alguns segundos, a olhar a imagem da Virgem Santíssima. Era como se estivesse venerando-a. 
A viúva do caminhoneiro, na primeira fila, com os filhos à sua volta, ao presenciar a pequena ave junto da imagem, ajoelhou-se e seus olhos irromperam em lágrimas. Em seguida, com a rapidez que lhe é peculiar, o beija-flor voou e pairou, sobre os dois assassinos, sentados no banco dos réus. Somente agora é que todos perceberam a presença da pequenina ave.        
Gradativamente, o silêncio foi tomando conta do salão. Agora só se ouvia os acordes da Ave Maria e o zumbido das asas invisíveis do beija-flor.
Os assassinos olharam para o alto e, com as feições atônitas, incrédulas, começaram a balbuciar, em voz alta:
"O beija-flor! O beija-flor! O beija-flor!!"

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O colibri voou e pairou sobre o Juiz. O magistrado, olhando para o alto e dando-se conta do momento sublime e misterioso pelo qual estavam passando, ergueu os braços e disse emocionado:
- Louvado seja Deus, louvada seja a Virgem Maria!
O beija-flor num voo rápido, pairou sobre o corpo de jurados que foram unânimes nas condenações. Estes repetiram em uníssono, as frases e o gesto do Juiz:
- Louvado seja Deus, louvada seja a Virgem Maria!
O colibri revoou pelo salão e, quando todos pensaram que iria embora, pairou a pouco mais de dois palmos, frente ao rosto da viúva do caminhoneiro, prostrada de joelhos e abraçada aos filhos. Ao ver o beija-flor, tão perto do seu rosto, a mulher, em lágrimas, fechou os olhos. As lágrimas brotavam-lhe pelas pálpebras cerradas, desciam pelas faces e gotejavam no vestido negro.
Foi uma plateia estarrecida que presenciou o beija-flor aproximar-se lentamente do rosto da viúva e tocar suavemente seu bico fino e comprido no filete de lágrima da face direita. Afastou-se e repetiu o gesto na face esquerda. Era como se estivesse sugando o néctar de uma flor. 
A seguir, revoou pelo salão, atravessou a janela por onde entrara e se perdeu no espaço de céu azul. Com ele também se foram os últimos acordes da Ave Maria...
A viúva, olhando para a janela por onde se fora a pequena ave, disse para os filhos à sua volta, em meio ao silêncio geral:
- Um dia vocês dirão aos teus filhos, meus netos, que
viram a alma do seu pai, flutuando nas asas de um beija-flor.

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