domingo, 5 de junho de 2016

SÃO LÁZARO DE PIRAJÁ

                                                                                        
                    [Sujeito a revisão oficial da editora]

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                                                                                         Página - 01
                                                                                        
   
    "Nesta estória, qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas, nomes, entidades públicas ou privada, situações... é mera coincidência e pura imaginação do autor."


                                             Introdução

    Se você der uma palmada no seu filho de aproximadamente um ano de idade, ainda engatinhando as palavras e, em seguida, lhe pedir o doce ou a chupeta que por acaso ele tenha à mão, com certeza, dedinho em riste, lhe responderá: "Dou não, cê bateu." Certamente, mais tarde, quando passar a raivinha, ele mudará de opinião mas, logo após as palmadas, não.
      
    Se você arrebentar o seu cão de estimação a pauladas e, a seguir, agachar-se na frente dele e estalar os dedos chamando-o, mesmo ferido, sangrando, ele se arrastará para perto de você abanando o rabo alegre e solícito, tentando lamber as suas mãos como se nada de mal houvesse acontecido.
    O ser humano já traz o ódio e o rancor desde o berço, no cão, tudo isso é inexistente.

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                                Prefácio  


verídico, da estória SÃO LÁZARO DE PIRAJÁ, que será lançada em livro com, aproximadamente, 200 páginas e uma edição de 1.500 exemplares, neste ano de 2017. Prometi ao santo São Lázaro [Omolu na Umbanda], meu anjo da guarda, que 1.000 exemplares serão distribuídos gratuitamente, na sua Igreja da Federação, em Salvador, BA, no dia da sua festa. Os outros 500, também serão doados na Igreja dele, na localidade de  Pitanga dos Palmares, município de Simões Filho - BA, com data a ser definida por Binho do Quilombo Livre. Meu genro. 

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    Morei na cidade do Rio de Janeiro de 1970 a 1983. No ano de 1975, residia numa pequena pensão próxima ao fim de linha de ônibus Horto - Copacabana, no bairro do Horto Florestal, Zona Sul.
Essa pensão situava-se à margem da estrada, na subida para a Vista Chinesa. Os fundos das casas, após os amplos quintais, já era, naquela região, o início da mata da Floresta da Tijuca. Junto a porta da cozinha tinha uma pequena varanda com três paredes, coberta também, como a casa, com telhas de cerâmica. Ali, dona Rosa, a proprietária da pensão e nós hospedes residentes, guardava bregueços... carrinho de mão, pá e enxada, escada, ferramentas, baldes, essas coisas.
    Tudo teve início numa tarde de sexta-feira, quase ao anoitecer. Passava pouco das seis horas. Eu estava sentado no sofá da sala de visitas, assistindo alguma coisa na TV, quando a gritaria na rua começou:
    "Pega, mata, não deixem esse leproso escapar!"
    Gritava um da turba ensandecida. Levantei-me e fui até a porta da rua, quando os justiceiros lamentavam o tal leproso ter escapado. Aí vim saber: eles queriam matar um cachorrinho vira-lata que aparecera por ali durante o dia, empesteado de feridas, pelado, com cortes profundos e putrefatos por todo o corpo. Um dos exaltados disse em voz alta e, também como os outros, segurando um pedaço de pau:
    
                                                                                          Página - 02


    "O condenado escapou, entrou na mata. Mas vamos ficar de sobreaviso: amanhã, quando o dia raiar, vai ter de sair pra procurar comida e água. Aí agente tritura o nojento. Empesteado como está, é capaz de transmitir doenças pro povo da região, ou mesmo pra outros animais. Amanhã se aparecer, não vai escapar mesmo."
    Retornei ao sofá e, enquanto dona Rosa arrumava a mesa para servir o jantar, fui até o quintal pegar um par de botas que deixei secando durante a tarde. Quando retornava, ouvi um barulho e movimento meio estranho bem lá no fundo da despensa que despertou minha atenção. Naquela região era comum os moradores se deparar com raposas, cobras, sariguês, tatus, macacos e tantos outros bichos, zanzando pelos quintais. Cauteloso, coloquei o par de botas ao lado da porta da cozinha e acendi a lâmpada da despensa. 
    Ao olhar para o canto, bem lá no fundo, vi deitado, encolhidinho e assustado, o cachorrinho que queriam matar. Ele olhava pra mim com os olhinhos desmesuradamente abertos. Tinha o frágil corpinho repleto de feridas. Em alguns lugares até com chagas abertas recentemente e sangue coagulado. Tremia muito, mas com certeza não era de frio pois o clima naquele mês, na cidade, durante o dia, beirava os 40 graus, à sombra. O coitadinho estava apavorado e tremia, com certeza, de medo. Me aproximei e, a medida em que fazia isso mais receoso ele ficava. Perto dele, me agachei e disse, quase num sussurro, para não ser ouvido dentro da casa, pois sabia que, se dona Rosa o visse, chamaria os justiceiros para terminar o serviço. Em meses residindo ali, percebi nesse meio tempo, que ela não era muito chegada a cão algum, mesmo gozando de saúde, imagine então naquele deplorável. Amiguinho, não vou lhe fazer mal algum. Ao ouvir minha voz, diminuiu mais a tremedeira. Afaguei sua cabecinha ferida dizendo. Amanhã cedinho vou lhe botar num carrinho de mão  e levá-lo ao veterinário, ali na Praça Santos Dumont. Vai ter de ser mesmo num carrinho, porque motorista de táxi algum vai querer lhe levar nesse estado em que você está. Agora vê se continua quietinho aí pra não chamar a atenção do pessoal lá dentro. Apaguei a lâmpada e entrei na casa. Falei para dona Rosa que estava meio fastioso e jantaria mais tarde. Ela separou meu prato.
    Cerca de onze horas, quando todos já tinham se recolhido aos seus aposentos, disfarçadamente peguei meu jantar, coloquei numa vasilha de plástico e levei, junto com outra cheia de água gelada. Acendi a luz e coloquei na frente do cachorrinho. O coitadinho estava esfomeado. Comeu e bebeu tudo, na maior gulodice. Antes de me deitar, lá pra meia-noite, pé-ante-pé, fui na despensa e acendi a lâmpada. O cãozinho ressonava, encolhidinho no canto. As vasilhas completamente vazias! Enchi novamente a de água e disse para mim mesmo, em pensamentos. Amanhã cedo, após ser medicado, deixo você no veterinário e pago algumas estadias. Quando estiver melhor, vou ver para onde te levo. 

  
                                                                                          Página - 03


Sei que a dona Rosa não vai mesmo permitir que você permaneça aqui. Bem, primeiro vamos cuidar dessas chagas e ferimentos. O restante agente vê depois.
    Fui deitar. Na manhã seguinte bem cedinho ao raiar do dia, levantei, me vesti e, ansioso segui até a despensa para preparar o carrinho de mão. Ao olhar para o cantinho percebi, pesaroso, que o meu amiguinho se fora. Onde dormiu, ficou no piso de cimento, sujeiras de sangue e coisas das feridas putrefatas. Vi também, no chão do quintal, que o seu rastro entrava na mata. Disse para mim mesmo. Logo mais vou pegar um pedaço de corda e procurá-lo. Não sossego enquanto não levar aquele coitadinho para ser medicado, mesmo que tenha de queimar um dia de trabalho na firma. Mais tarde invento qualquer desculpa. 
    Aproveitei e fui fazer a barba na pia de lavar roupas, ali fora da casa, ao lado da porta da cozinha e junto da entrada da despensa. Um espelho foi colado no reboco da parede, em frente do tanque.
Dentro da casa o pessoal já se preparavam para mais um dia de labuta.
    De repente tudo começou. No instante que terminei de me barbear e ainda segurando o barbeador, ouvi o barulho e gritos de vozes na rua seguido de uma forte pancada fofa e um uivo doloroso: "AAAUUUUUUUUUUUUUUUU..." 
    Um deles gritou: "Mata, mata, isso... Dessa vez esse leproso não escapa!"
    Nesse momento dona  Rosa, saía da cozinha. Quando me viu, exclamou em voz alta: "Meu Deus, Orlando!!"  Precipitou-se de volta para o interior da casa. Logo, em questão de segundos, retornou com uma cadeira. Pôs atrás de mim e disse me segurando pelos ombros com as duas mãos: "Orlando, sente aqui. Você está prestes a desmaiar! - gritou para a empregada - Lúcia depressa, traga uma xícara com café quente, Orlando está passando mal!"
    Somente aí percebi minhas mãos trêmulas. O barbeador caiu dentro do tanque. Ao olhar para o espelho na parede, vi meu rosto numa palidez impressionante, sem uma gota de sangue. As pernas fraquejando. Sentei na cadeira. Dona Rosa passou pra mim a xícara que a mocinha trouxera. Com sacrifício consegui segurá-la e ingerir o líquido quente com a ajuda da mulher que abriu os meus lábios quase cerrados. Quando terminei, articulei algumas frases intercaladas... Todo meu corpo tremia. Dona Rosa, essa zoada, pancadaria, esse uivo doloroso de agonia... Estão matando o cachorrinho doente, não é?!
    Ela respondeu que sim e, ao mesmo tempo indagou. "Orlando, você tem algum antecedente... Quero dizer; algum antigo problema de saúde? Sempre lhe acontece isso?!"
    Respondi. Dona Rosa, jamais em toda a minha vida aconteceu um troço desse. Tudo começou quando ouvi as pancadas e os gritos de agonia do cachorrinho!
    
                                                                                          Página - 04


    Após me recuperar fui até o local onde mataram o bichinho. Me informaram que jogaram seu corpo dentro de um container ali perto. Retornei à pensão, peguei uma camisa limpa, um rolo de fita adesiva, uma pá e segui para a lixeira.
    Lá, retirei o corpinho horrivelmente mutilado, enrolei na camisa e passei em volta dele, várias vezes, a fita adesiva. Botei ele no ombro esquerdo e a ferramentas no direito. Em seguida comecei subir a ladeira, no rumo da Vista Chinesa. Cerca de uns 200 m adiante, entrei na mata. Junto a uma arvore frondosa o sepultei. Quando terminei, cruzei as mãos sobre o peito e contrito, disse num sussurro com as lágrimas descendo pelas faces:
    "Adeus amiguinho e descanse em paz. Perdoe se não deu pra fazer por você, o que tinha em mente."
    Retornei para casa, guardei as ferramentas, lavei o rosto e braços. 
    Em seguida fui até a casa de Jorge, ali perto. Jorge é o proprietário e responsável pelo Centro de Umbanda de Vovó Cambina D´Angola. Perguntei ao encontrá-lo: Jorge, que dia vai ter baticum? [Sessão] Ele respondeu: "Segunda-feira, Orlando." E Seu Omolu vai baixar? [Omolu, São Lázaro na religião católica] "Se você estiver precisando, vai sim." Então vou estar aqui, Jorge. Estou muito precisando falar com ele.
    Na segunda-feira, aproximando-se da meia noite, após outros orixás já terem baixado no Terreiro, chegou a vez de seu Omolu.
Jorge, o Pai de Santo, vestindo calça e camisa brancos, descalço, dançava acompanhando o repique dos tambores, os cânticos e as batidas de palmas da plateia. De repente ele parou no meio do Terreiro e começou a sacudir violentamente a cabeça para frente e para trás. Em seguida saudou os presentes, com as feições ligeiramente transformadas, na voz de seu Omolu. Uma Cambona [ajudante], aproximou-se dele e cobriu sua cabeça com um alvíssimo pano. 
    Os tambores cânticos e palmas silenciaram. Eu me encontrava no meio do povo. Seu Omolu caminhou até a plateia, apontou na minha direção e perguntou, diante do silencio: 
    "O fio quer falar com o veio, não é?" - Respondi:
     Quero sim, seu Omolu e é  muito importante, muito mesmo. Respondi caminhado para junto dele. Seu Omolu segurou na minha mão e me levou pro meio do Terreiro. Lá, ficamos frente a frente.
    "Fio - disse ele, - o veio é todo ouvidos."
    Seu Omolu - perguntei, - o que aconteceu comigo, dias atrás, quando estavam matando um cachorrinho, aqui perto?
    Ele levantou o braço direito, tocou levemente a minha fronte esquerda com o dedo indicador e respondeu:
    "É que o veio estava, está e sempre estará aqui... - desceu o braço, pousou o dedo sobre o meu peito esquerdo e completou - e aqui."
    Os tambores voltaram a repicar e os cânticos e palmas, novamente inundaram o salão iluminado por luzes e velas, queimando no gongá [altar].
    Irrompi em lágrimas e abracei-me com seu Omolu.
    No dia seguinte, peguei caneta, papel e comecei a rabiscar o primeiro manuscrito de "São Lázaro de Pirajá"...  Corria o ano de 1975. 
     
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                                                  Capítulo - 1

                                              
                                                                                          Página - 05


O relógio na parede marcava aproximadamente quatro horas da tarde, quando o telefone chamou.
    "Triiiiiiin... triiiiiiin... triiiiiiin..."
    O agente Maltez atendeu:
    - Alô, 4ª Circunscrição...
    " É da 4ª Delegacia aí de São Caetano?
    Indagou uma voz masculina, denotando aflição.
    - É sim meu amigo, tenha calma; o que está acontecendo?
    "Um velho está fazendo o maior rebu aqui no início da Avenida San Martins com o Largo do Tanque! Destruiu quase completamente um automóvel com uma estaca e arrebentou o motorista que foi levado pro Pronto Socorro em petição de miséria!"
    - Gente boa - pediu o policial, - fale com mais calma, eu não estou entendendo coisa com coisa! E porque ele...
    " Epa, agora o velho quase acerta uma cacetada num PM! O soldado correu fazendo gestos com o dedo indicador em volta do ouvido e pedindo ao povo pra se afastarem. Está dando a entender que o homem é doido varrido. Tá o maior engarrafamento por aqui. Travou quase tudo. Venham depressa, Click."
    O delegado sentado atrás da sua mesa, na sala contígua, indagou:
    - Maltez, o que está acontecendo por aí?
    - Acho que é trote, Dr. Bandeira - respondeu o agente policial recolocando o fone no gancho, - um sujeito disse que um velho amalucado está provocando a maior confusão lá embaixo no Tanque com a San Martins...
    " Triiiii... Triii, click."
    Agora foi o delegado quem atendeu: 
    - 4ª Circunscrição Policial, boa tarde...
    " Depressa, depressa - chamou aflita, uma voz feminina, - um velho acaba de matar um homem aqui no Largo do Tanque, parece que matou! Destruiu seu automóvel e..."
    - Minha senhora - pediu o delegado, - explique-se melhor, fale mais devagar. O que está ocorrendo...
    - Dr. Bandeira - interrompeu Maltez, - a Central chama urgente pelo rádio.
    " Chiii, venham depressa - gritou a voz no telefone, - agora o velho está tocando fogo no carro!"
    - Dr. Bandeira, o rádio.
    " Central de Polícia chamando a 4ª C.P."
    - Delegado Epaminondas Bandeira titular da 4ª C.P. na escuta, prossiga.
    " Envie com brevidade uma viatura para a Avenida San Martins com o Largo do Tanque. Mande vários homens armados, é caso gravíssimo!"
    - Maltez - ordenou o delegado voltando-se para o subordinado, - despache a viatura com todos policiais que estiverem por aí e siga também com eles. Veja o que está ocorrendo e se comunique comigo. Estou esperando o farmacêutico aí vizinho para me aplicar uma injeção. Vê se resolve isso lá no Tanque.
    

                                                                                          Página - 06


    Maltez apressou-se as cumprir as ordens do superior. O delegado retornou ao rádio:
    - Delegado Epaminondas Bandeira para a Central de Polícia.
    " Central de Polícia na escuta, prossiga."
    - Viatura a caminho do Largo do Tanque com todos os homens disponíveis.
    " Obrigado delegado Bandeira."
    O policial sentou-se ao lado da mesa do rádio. Segundos após, ouviu o ruido estridente de pneus, em arrancada lá fora. O farmacêutico adentrou à sala do delegado trazendo numa bolsa, seringa e caixas de remédios. Menos de dez minutos mais tarde, o agente Maltez chama pelo celular:
    " Dr. Bandeira, o rádio da viatura deu pane. A situação aqui é a seguinte: o automóvel está ardendo em chamas. Os bombeiros da Calçada estão presos no engarrafamento lá pela Baixa do Fiscal. O trânsito é caótico em toda essa região. O motorista do automóvel incendiado, segundo informações colhidas aqui, foi levado pro Pronto Socorro em estado grave. Tá o diabo aqui embaixo!"
    - E já conseguiram dominar o louco desordeiro, Maltez?
    " Ainda não, Dr. Bandeira. O velho está armado com uma estaca de madeira e ameaça quem se aproximar dele!
    - Mas como ou porque ele aprontou toda essa confusão? Ninguém disse nada por aí?
    " O que consegui apurar Dr. Bandeira, foi que a vítima invadiu o semáforo e matou atropelado um dos cachorros que acompanhavam o agressor. Mais adiante, uma carreta estava manobrando no início da Av. San Martins, para entrar num depósito de uma loja de material de construção, tomando toda pista. O automóvel foi obrigado a parar e o velho correndo o alcançou e... bem, o resto é o que está acontecendo."
    - Escute Maltez, volte lá e veja se o convence a entrar no camburão. Tente evitar pancadaria. Espero resposta.
    Instantes depois, Maltez chama novamente:
    " Dr. Bandeira, o velho disse que entra na viatura, mas só se levar seus cães com ele.
    - Maltez - ponderou o delegado, - vamos fazer de tudo para evitar mais violência. Faça o que ele pede. Quantos cachorros são? dois, três...
    " Qual é dois ou três, Dr. Bandeira! São dez ao todo, fora o que morreu atropelado!"
    - Espere Maltez e me escute com atenção. Andando acompanhado com tantos cães assim e aprontar uma mega confusão dessa por causa da morte de um deles, então esse homem só pode ser o velho São Lázaro de Pirajá! Avise imediatamente para todos os policiais aí que ele é inofensivo...
    " INOFENSIVO?!!"
    - Transmita minhas ordens Maltez e que ninguém, mas ninguém mesmo, em hipótese alguma, toque um fio de cabelo desse velho. Estou descendo à toda.
    
                                                                                          Página - 07


      " Vou desligar, Dr. Bandeira. Os colegas e alguns PMs estão apertando o cerco para pegá-lo!"
    A viatura passou pela entrada da Capelinha a mais de 80 Km. A ladeira do Cacau, descida de mão única para o Largo do Tanque, já estava completamente tomada de carros, num monstruoso engarrafamento. O delegado percebeu isso e guinou o volante para sua esquerda, entrando pela contra-mão. Acendeu os faróis, aumentou os decibéis da sirene e desceu pela Estrada Velha.
    Com muito sacrifício conseguiu levar a viatura até a entrada da Ladeira do Peru.
    Um troar infernal de sirenes, vindo da Baixa do Fiscal, magoou-lhe os tímpanos.
    " São os Bombeiros da Calçada. Duvido que consigam passar pelo engarrafamento aí próximo do Tanque."
    Disse para si mesmo em pensamentos, enquanto saltava da viatura. Mais adiante vislumbrou o Largo do Tanque, caótico à sua frente. 
    Maltez, ofegante, chegou correndo ao seu encontro e dizendo:
    - Dr. Bandeira, o automóvel já era. Os bombeiros estão enganchados nessa bagunça, lá pra baixo. O carrão, como o senhor ver, está no maior fogaréu!
    O delegado indagou preocupado:
    - Alguém maltratou o velho, Maltez?
    - Não Dr. Bandeira - respondeu o agente policial, - o pessoal da Furtos, da 2ª, alguns PMs e colegas da 4ª já iam pegá-lo, na tora, quando transmiti suas ordens à tempo.
    - Ainda bem Maltez - respirou aliviado o veterano policial, passando a mão direita pela cabeça, onde os cabelos lisos e grisalhos se sobressaiam - Vamos lá Maltez.
    Foram abrindo caminho entre a multidão curiosa, em direção ao epicentro do tumulto. Logo chegaram ao vão livre, em forma de arco, passando pelos policiais que formavam parcialmente, um muro humano, à volta do velho maltrapilho e dos seus cães.
    Foi então que o delegado vislumbrou o responsável por tudo aquilo. Como previu, era mesmo o velho São Lázaro de Pirajá. Magro, cerca de um metro e setenta de altura, cabelos e barba ralos e grisalhos. Vestia uma calça surrada, remendada em alguns lugares e um paletó desbotado, por cima de uma camisa azulada e puída na gola. Nos pés, calçava uma um par de alpargatas de couro cru.
    Estava de costas para o veículo em chamas. Mantinha-se de pé, impassível, com uma enorme estaca segura pelas mãos e apoiada sobre o ombro esquerdo, em posição de defesa. Em volta de si, seus cachorros inquietos, atentos. Alguns deles, apesar de magros, tinham os caninos expostos, num gesto ameaçador a quem se aventurasse tocar no seu dono.
    O delegado voltou-se para os policiais e pediu ao seu subordinado:
    - Maltez, veja se consegue trazer o camburão até aqui e encoste de ré.
    - É pra já, Dr. Bandeira.
    
                                                                                          Página - 08


    Respondeu o agente policial, apressando-se a sair do círculo. O delegado dirigiu-se aos policiais e disse:
    - Pessoal, sou o delegado Epaminondas Bandeira, titular da 4ª Circunscrição Policial. Esse cidadão aí - apontou para trás, - está sob a juridição da minha delegacia, portanto podem deixá-lo comigo - Em seguida encaminhou-se até um policial da sua equipe, que segurava uma arma e perguntou. - Agente Carlão, para que esse revolver na mão, exposto assim em meio a centenas de pessoas inocentes?!
    - Bem Dr. Bandeira - respondeu o policial, um tanto desconcertado, - é que o velho está armado com aquela estaca e...
    O delegado o interrompeu, num tom de indignação:
    - Mas ele é um velho de uns 80 anos e está armado apenas com uma estaca. Ademais, olhe à sua volta e veja que vocês são mais de 15, meu filho!
    O agente olhou para os lados, deu de ombros, grunhiu algo ininteligível e enfiou a arma na cintura. O delegado disse:
    - Não tem problema, agente Carlão: logo mais, à noite, vou escalar numas rondas, naquelas bocas, onde terá várias oportunidades para mostrar essa arma. Não propriamente para exibi-la como agora mas, com certeza, para usá-la. E não serão pessoas inocentes ou um velho maltrapilho que irão vê-la. Disso tenho a mais absoluta certeza. Estamos entendidos, agente Carlão?
    O policial remoeu calado. O delegado deu meia volta e se encaminhou para onde estava o velho São Lázaro.
    Era grande a expectativa entre os policiais e a multidão. O calor das chamas chegava até eles acompanhado de estalidos. Os cães rosnavam inquietos, ante a aproximação do policial. A voz do velho soou serena, entre o crepitar das chamas e o silêncio da multidão:
    - Calma meninos, esse é o Dr Bandeira da 4ª Delegacia, amigo da gente.
    Os cachorros se acalmaram às palavras do dono. O delegado parou frente a eles e disse, de forma ríspida:
    - Mas o que diabos você me aprontou dessa vez São Lázaro?
    O velho deixou todos, completamente boquiabertos quando, num gesto de obediência e submissão, largou a estaca no asfalto e abaixou a cabeça. O delegado prosseguiu, fumaçando
    - Quase mata o homem; sei lá ele escapa, destruiu o seu carro, engarrafou essa merda toda e, ainda por cima, quer enfrentar todo esse aparato policial à cacete! Olha São Lázaro, dessa vez você entrou numa enrascada tamanho família dos diabos! Aliás  mais uma, mais uma - abaixou o tom da voz para que somente ele o ouvisse e prosseguiu! - E lhe digo com toda a sinceridade que existe dentro de mim: dessa vez, depois disso tudo aí, vou poder fazer muito pouco por você, muito pouco mesmo. Ficará numa cela, lá na 4ª e veremos no que dará toda essa mega-encrenca.
    - Está bem Dr. Bandeira - concordou ele, ainda com a cabeça baixa - mas eu posso levar os meus cachorros comigo?
    - Pode sim.
   
                                                                                          Página - 09


     - E também posso enterrar o Capenguinha ali naquele terreno baldio, próximo ao posto de gasolina?
    - Está bem, está bem, São Lázaro; mas vê se anda depressa com isso, precisamos terminar com essa confusão o mais depressa possível.
    O velho envolveu o corpo do cãozinho no papel de um saco de cimento, encontrado ali perto. Pessoas que se aglomeravam à volta, ficaram sensibilizados quando o velho pegou o cachorrinho nos braços. 
    Ele fez isso de uma maneira tão carinhosa que a cena lembrava mais um pai amoroso apanhando o filho morto no meio da rua. E todos perceberam seus olhos tristes e lacrimejantes. Um gari se aproximou passando pelos policiais e se ofereceu:
    - Meu velho, eu lhe ajudo com a minha pá.
    O velho agradeceu e os dois seguiram para um terreno baldio, ao lado do posto de gasolina. Minutos depois estavam de volta.
    Ajudados pelo dono, os cães saltaram para o interior da gaiola. O velho subiu por último, sentou-se no assoalho e recostou-se numa grade. Pegou o cãozinho menor,  pôs no colo e começou a acariciá-lo. Os outros deitaram-se, apertando-se à sua volta. Maltez fechou a porta traseira. O delegado disse, enquanto subiam na viatura:
    - Maltez, vou contigo até onde deixei o carro. De lá seguirei na frente. Os outros agentes ficam por aí até que essa multidão se disperse. Mais tarde você vem buscá-los. Vamos, abre caminho aí com a sirene. Toca ela a toda carga! Gente - pediu aos policiais, - Ajudem a limpar o caminho pra nós.
    Maltez arrancou com a sirene na carga máxima.
    
    Na delegacia o delegado chamou o carcereiro:
    - Getúlio.
    - Pronto, Dr. Bandeira.
    - Escute, o Maltez está vindo aí com um preso, prepare a maior cela pra ele. Ponha lá uma cama de lona e providencie também algumas folhas de papelões pra forrar o chão. Com ele vem uns oito ou dez cães. Pode por todos na mesma cela.
    - Espere aí Dr. Bandeira, acompanhado assim com tanto cachorro, então esse preso só pode ser o velho São Lázaro de Pirajá, não é?
    - E quem mais poderia ser, Getúlio. Quem mais neste mundo aprontaria uma desgraceira dessa que acaba de aprontar, pela simples morte de um vira-lata, senão aquele velho maluco. Aprontou uma dos diabos lá embaixo, no Tanque!
    - É, Dr. Bandeira, os noticiários de rádio e TV, martelam seguidamente o rebu. Mas eu não sabia que o causador de tudo era o velho São Lázaro. Em momento algum, mencionaram tantos cachorros. Pelo que dizem, parece que a vítima está muito grave e talvez não escape.
    O delegado meneou a cabeça pros lados e lamentou num desabafo:
    - Diabo de velho maluco. Se estrepou dessa vez!
    O carcereiro comentou:
    
                                                                                          Página - 10


    - Uns anos aí pra trás, quando tirava serviço na 7ª do Rio Vermelho, um açougueiro quebrou, com uma bicuda da bota, algumas costelas de um vira-lata vadio, que surrupiou um pedaço de carne que do balcão, caíra no chão. O velho São Lázaro hia passando na hora e pra quê. Foi o diabo! O velho pulou pra trás do balcão e arrebentou com o magarefe. Não tomou conhecimento de facas, machado, facão... de nada mesmo. Até um dos empregados que tomou as dores do colega, também entrou no cacete.
    Bem, pra encurtar, quando conseguimos arrancar os dois das mãos dele, já estavam em petição de miséria.
    O delegado comentou:
    - Getúlio, se eu fosse enumerar todas as confusões que o velho São Lázaro tem aprontado, desde que estou na polícia, daria para encher um rosário e dos grandes. Isso somente as que presenciei. Essa do açougueiro que você acabou de contar, soube na época pelos jornais. Fiquei sabendo também, à boca pequena, que um certo carcereiro, chamado Getúlio, lhe facilitou a fuga, uns três dias depois do acontecido. Não foi isso mesmo? 
    O carcereiro sorriu e disse:
    - Olha Dr. Bandeira, até hoje não conheci um policial que não já tenha dado uma colher-de-chá pra esse velho. Ele só faz essas quebradeiras por que matam ou maltratam um cachorro. Aí fica alucinado. Não façam isso e o velho São Lázaro é o homem mais dócil e mais pacato desse mundo.
    O delegado concordou:
    - Sabe Maltez, as vezes sinto uma imensa piedade desse velho. Dizem que mora lá pros lados do bairro de Pirajá, num imenso terreno que invadiu quando ainda era rapazinho e cuida de mais de uma centena de cachorros. São cães idosos, doentes, mutilados, cegos... que pega vagando abandonados pelas sarjetas. Bem Getúlio, fique responsável pela carceragem dele e que ninguém, mas ninguém mesmo, aqui nesta delegacia, toque com maldade, um fio que seja dos seus cabelos, Estamos entendidos?
    - Quanto a isso, Dr. Bandeira, pode ficar despreocupado. Creio que todos colegas aqui da 4ª, pensam como o senhor e eu, em relação ao velho São Lázaro.
    - O agente Carlão não pensa como nós, Getúlio: ameaçou o velho com a sua arma, lá no Tanque.
    - Recruta, Dr. Bandeira e uma certa dose de exibicionismo que muitos colegas tem quando estão no meio de pessoas. Lembra do agente Carcará? Ele adorava dar porrada no sujeito, quando tinha gente por perto. Mal encostava um coletivo aí na porta da delegacia, trazendo problema com algum passageiro, Carcará logo se adiantava. Bastava o motorista ou o cobrador dizer que o cara estava bêbado, fazendo zoada, não querendo pagar a passagem ou qualquer outra coisinha corriqueira, que podia ser contornada sem violência, Carcará hia logo metendo a porrada no coitado. Porque? Porque geralmente o coletivo estava repleto de passageiros. Qualquer probleminha de rua, se houvesse aglomeração de pessoas por perto, ele batia no sujeito sem a mínima precisão, só para aparecer. Agora se botassem ele pra desentocar vagabundos ou traficantes naquelas bocas quentes, o valentão dava até caganeira de medo...

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     O ruido da sirene da viatura interrompeu o carcereiro. Os dois policiais voltaram-se para a porta. Getúlio mudou o rumo da conversa:
    - Estão chegando, Dr. Bandeira.
    - Vai lá Getúlio. Enquanto isso vou me comunicar com o Pronto Socorro e saber do estado da vítima. E não tranque a cela do velho. Seus vira-latas podem querer sair ao pátio para suas necessidades. Mas olha lá Getúlio, boca de siri com essas regalias.
    O agente Getúlio se retirou, indo ao encontro dos recém-chegados. Já os encontrou fora da viatura. Saudou o velho:
    - Oi São Lázaro, Dr. Bandeira me encarregou de cuidar de você e seus cães.
    - Obrigado, agente Getúlio - agradeceu e estranhou. - Você por aqui?
    O policial sorriu:
    - É isso mesmo, São Lázaro, fui transferido da 7ª pra cá. Agora estou fazendo das tripas coração para ver se crio raízes por aqui, porque uma delegacia que tem como titular, um delegado do quilate do Dr. Bandeira, é pro sujeito querer mesmo enraizar nela. Bem, vamos indo, meu velho.
    São Lázaro o seguiu com seus cães e entrou na cela indicada. Enquanto se arrumava com seus cachorros, advertiu ao policial que se afastava:
    - Agente Getúlio, você esqueceu de fechar o cadeado.
    O policial parou, voltou-se e respondeu:
    - São ordens de Dr. Bandeira, meu velho. Casos os cães queiram fazer suas necessidades é só irem ao pátio. Até mais meu velho. Vou ali fora providenciar algumas folhas de papelões pra forrar o piso da cela e trazer uma vasilha com água pra eles. Se quiser beber água meu velho, ali ao lado tem um bebedouro com ela geladinha.
    Disse isso e se afastou. O velho sentou-se numa caminha de lona, dobrável e os cães deitaram-se no piso, à sua volta.
    Minutos mais tarde, Getúlio retornou, trazendo diversas folhas de papelões, debaixo do braço esquerdo e uma vasilha feita de garrafa Pet na mão direita.
    - Pronto São Lázaro - disse ele entrando na cela, botando os papelões sobre o piso e a vasilha com água num canto da parede - creio que dá pra se quebrar um galho, não dá?
    - Ora se dá. agente Getúlio e muito obrigado por tudo!
    Agradeceu, enquanto espalhava os papelões pelo piso. Os cães, mais que depressa, deitavam-se sobre eles. Alguns, primeiro bebiam da água.
    O policial sentou-se na caminha e comentou:
    - Pelo que estou sabendo meu velho, hoje você arregaçou no Largo do Tanque, não foi? - Não esperou resposta e prosseguiu - Todos noticiários de rádio e televisão, martelam a todo instante, o tamanho do rebu! 

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Agora, tenho a mais absoluta certeza que, pra ter acontecido isso, fizeram alguma espécie de maldade com algum cachorro perto de você, estou certo?
    O velho  indagou:
    - Você não esteve lá na confusão do Tanque?
    - Não - respondeu o policial, - tinha ido almoçar no bar restaurante da Ester, na entrada da Formiga, quando o pessoal desceram pra lá. Também teria ido se estivesse aqui pois, de preso aqui na 4ª hoje, só tem mesmo você.
    Houve uma breve pausa. O velho sentou-se no meio da cela, entre os cães e começou a afagá-los carinhosamente. O agente prosseguiu:
    - Sabe São Lázaro, Dr. Bandeira gosta muito de você, muito mesmo!
    O velho lamentou:
    - Conheço Dr. Bandeira há tantos e tantos anos e sempre estou lhe dando trabalho, abusando da sua paciência e boa vontade. Agora agente Getúlio, me conta do Pintadinho. 
    O carcereiro espraiou-se num largo sorriso e respondeu:
    - O danadinho cresceu que só você vendo, São Lázaro. Ele agora é a alegria da casa, principalmente das crianças. Lembra que você me deu ele ainda pequenino? Tá enorme o danado!
    - Você não imagina o quanto fico feliz ao saber que um cão está sendo bem cuidado, agente Getúlio. Obrigado por isso.
    - Ora ora, São Lázaro, sou eu quem tem de agradecer pelo maravilhoso presente - O velho fazia festinhas nos cães à sua volta, o policial prosseguiu, olhando para eles. - É incrível como o ser humano tem a coragem de matar, deliberadamente, uma coisinha inocente dessa! Segundo comentários de jornalistas, locutores de rádios e repórteres de televisão, o barão que você quebrou no pau, matou o cachorrinho por pura pressa e perversidade! O automóvel consumido pelo fogo pagou muito bem a vida do cãozinho. 
    O velho olhou para o policial e disse:
    - Não pagou não, agente Getúlio. Jamais uma máquina ou milhares delas, terão o valor da vida de um simples vira-lata, por mais sarnento ou leproso que ele esteja, jamais. Isto, pelo menos para mim, agente Getúlio.
    - Sei não - disse o policial levantando-se, - um apelido jamais foi tão bem posto em alguém, quanto esse que lhe puseram. Isto é, se for verdade que o santo São Lázaro amou tanto os cães, quanto você os ama! Até mais tarde, meu velho.
    - Até mais tarde agente Getúlio, siga com a paz de São Lázaro.
    O policial retirou-se. O velho enrolou o paletó e o fez de travesseiro. Em seguida deitou-se. Todos os cães se chegaram para perto da cama.
    Cerca de uma hora mais tarde, sentiu uma mão sacudir-lhe educadamente um dos ombros. Era o delegado acordando-o. O velho sentou-se na cama e o policial fez o mesmo. Após alguns segundos de silêncio, o delegado começou:
    
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    - O homem está muito ruim, mas já saiu do estado de coma. Foi transferido para uma clínica particular. Levou pontos na cabeça e diversos locais do corpo. Sem falar em dois dedos e três costelas quebradas... Bem, o resto são ferimentos superficiais. O homem São Lázaro - prosseguiu, - é um 'figurão', portanto anote o que vou lhe dizer: antes que termine o dia, com certeza aparecerá um alguém da família, com advogado, para acompanhar o inquérito. 
    Isto, trocado a miúdo, quer dizer que virá um interessado para procurar a mais rápida e melhor maneira de lhe arrancar a pele - O velho tinha os cotovelos apoiados sobre os fêmures e as mãos abertas em volta das faces encovadas, de barba grisalha. Ouvia atento ao policial porém, sua expressão sequer se alterava, ante o relato do delegado. O policial prosseguiu, demonstrando impaciência! - Escute estou lhe dando essas notícias, pra que se despreocupe porque, afinal, se o homem morresse, você praticamente passaria o resto da sua vida na prisão. 
    O velho o ouvia de forma impassível, parecendo mais preocupado com os cães à sua volta. O delegado folgou o nó da gravata e, diante da aparente displicência do amigo, explodiu nervoso:
    - São Lázaro, francamente, depois de tudo isso que você aprontou, estou mesmo propenso a acreditar no que dizem; que você não passa de um velho maluco e que já deveria estar, há muito tempo, era num hospício. Se for enumerar todas as confusões que você aprontou, simplesmente para defender um vira-lata, desde que me entendo na polícia, só posso mesmo é chegar a essa conclusão!
    O velho continuava na mesma posição. Não movia um músculo sequer e sua respiração era quase inaudível, ao contrário da do policial, ofegante. O delegado prosseguiu:
    - Está certo e dou valor que você sinta amor pelos cães, é natural. Mas fazer o arraso que fez lá no Tanque, somente porque um vira-lata foi morto atropelado, isso chega as raias do absurdo! Não existe lógica, de forma alguma, pra justificar, nem de longe, a gota serena da peste que você fez! Merda, assim já é demais! Diga alguma coisa, porra peste!!
    - Dr. Bandeira - pediu o velho, - não esbraveje e nem fique muito nervoso perto dos cachorros. Eles se sentem mal e ficam inquietos.
    - O quêeeeee?!!
    O delegado folgou mais o nó da gravata e respirou, de forma profunda, procurando se acalmar, diante da paciência do velho São Lázaro. Levantou-se e se retirou da cela, batendo a porta de grade com violência. O velho continuou sentado, sereno...
    Instantes mais tarde o policial retornou, mais calmo. Sentou-se ao lado do amigo e, após um instante de silêncio disse, com tapinhas afáveis, na coxa magra do velho:
    - Desculpa meu velho, realmente fiquei um pouco nervoso e... me descontrolei. Reconheço; desculpe-me...
    O velho, triste, olhava para o chão, quando começou pausadamente, num tom de voz, pesarosa:
    

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    - Tudo teve início quando eu esperava, com os meus cachorros, a sinaleira abrir para os pedestres. Foi quando o automóvel chegou numa velocidade fora do comum, vindo do bairro da Liberdade, pela Ladeira de São Cristóvão. Ele freou em cima de todo mundo que começavam a atravessar a rua e ficou buzinando nervoso e acelerando. Alguns até apontavam pra ele, o sinal verde pros pedestres. Eu hia mais devagar, acompanhado o Capenguinha. O homem ameaçou arrancar com o carro, gritando com a cabeça pro lado de fora, chamando agente de lerdos. Ligeiro apontei o sinal ainda verde pra nós. De repente ele arrancou, cantando pneus no asfalto! O Capenguinha, que o bom São Lázaro o tenha, andava mais devagar porque era aleijado. Só tinha três pernas. Aí não deu tempo de se livrar das rodas - O velho fez uma pausa e recriminou a si mesmo. - Dr. Bandeira, em parte a culpa também foi minha, pois eu vinha trazendo ele nos braços desde a 7 Portas, onde o peguei. Além de aleijado, o coitado também estava meio doentinho, fraquinho. Mas ali, chegando no Largo do Tanque, me deu uma câimbra horrível no braço direito e tive de botar ele pra caminhar...
Sempre tive esse problema, mas minutos depois ela some tão depressa como quando chegou...
    Bem, quando o carro disparou alucinado, gritei com todas as minhas forças. Pelo amor de São Lázaro, Capenguinha ainda não atravessou!! Foi tudo em vão. Os meus gritos se misturaram aos de agonia do cachorrinho sendo dilacerado, debaixo das rodas do automóvel - O velho fez uma pausa forçada no relato. Um nó na garganta, de forma involuntária, embargou a sua voz, por alguns segundos! - Acredite, Dr. Bandeira, pelo bom São Lázaro que está no céu, depois que vi o Capenguinha sendo esmagado, não percebi
mais nada e não relembro de coisa alguma do que pratiquei. Soube depois que uma carreta estava manobrando no meio da rua, ali no início da Av. San Martins, pra entrar num depósito de material de construção. O automóvel teve de parar e... quando dei por mim, o carro estava ardendo em chamas, o chofer sendo levado pra emergência e eu querendo enfrentar todo aquele aparato policial a cacete. Se não fosse o senhor, Dr. Bandeira, não sei o que teria sido de mim! Agora lhe digo; se o homem não tivesse matado o bichinho por pura perversidade, tenho certeza que não tocava um dedo dele que fosse. Já aconteceu, muitas vezes, de alguém atropelar e matar cachorro perto de mim e não dar esse branco de violência e revide dentro de mim arrebentando tudo pela frente. Mas quando isso aconteceu, tentaram evitar, de alguma forma, o atropelamento. Muitos freando ou jogando o carro pro lado. Agora, quando vejo um cão ser morto da forma covarde e perversa como fizeram com o Capenguinha, aí, sem querer, saio de mim - O velho fez uma breve pausa e se desculpou... - O senhor não pode imaginar, Dr. Bandeira, o quanto sinto estar sempre lhe dando trabalho, o senhor não imagina...
    O delegado pôs o braço no ombro do velho amigo e disse:


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    - Lhe compreendo meu velho; o que você não admite, lúcido ou não, e estou careca de saber disso, é que matem ou maltratem, deliberadamente, um cachorro perto ou longe de você. Seja ele de raça ou vira-lata. Sei que todas as confusões que aprontou até hoje, foram unicamente para defender um cão. A destruição do Canil Municipal, anos atrás, também foi revolta por estarem sacrificando os cachorros em caldeiras incandescentes.
    O velho, com a cabeça baixa, olhava para o chão. Tinha os olhos úmidos, demonstrando estar envergonhado ante as insinuações do delegado. Aquele policial amigo que jamais deixou alguém maltratá-lo na juridição em que estivesse. Aquele homem ali ao lado era, como sempre demonstrou, um verdadeiro amigo. Mesmo assim - recriminou a si mesmo em pensamentos, - fiz o que fiz, hoje, no Largo do Tanque, mesmo de forma inconsciente, abusando mais uma vez da sua bondade e paciência para comigo e meus cachorros!
    Estava envergonhado sim, e esse sentimento o velho extravasou com soluços quase silenciosos. Chorava baixinho... 
    O delegado disse, num tom de voz compreensivo:
    - Sê besta, meu velho, quase que estou adivinhando os seus pensamentos! E... quanto a essa de hoje no Tanque, como as outras, também lhe dou razão. Mas, pelo amor de tudo quanto é santo, não espalhe isso pra ninguém - o policial levantou-se, avisou que voltaria num minuto e foi até a sua sala. Retornou trazendo um jornal meio dobrado, sentou-se, desdobrou o jornal e mostrou a primeira página para o velho dizendo. - Meu velho, este jornal, aqui de Salvador, "CORREIO", guardo há alguns anos. Ele é de 05/10/2011 e todas as vezes que releio essa reportagem, me lembro de você - mostrou a manchete em letras garrafais. - "MUNDO CÃO - 51 ANIMAIS ENVENENADOS POR VINGANÇA". - Veja essa revoltante foto desse cachorro morto e pendurado com uma corda, pelo pescoço, na cancela da entrada da fazenda do homem que praticou essa horrível carnificina.
    O velho ao ver a foto, exclamou:
    - São Lázaro do céu!!
    O delegado comentou, abrindo o jornal:
    - Enquanto você faz o que faz em defesa em defesa dos bichinhos, esse fazendeiro... bem, vou ler toda reportagem pra você, meu velho.
    
    "Homem é acusado de distribuir carne envenenada e matar 51 animais. O cenário é de um massacre e o cheiro da carnificina está impregnado no ar de São Bento do Inhatá. Dezenas de corpos espalhados pelas propriedades, cadáveres deixados na beira da estrada e uma comunidade inteira estarrecida. A única diferença dessa para outras chacinas é que, em vez de seres humanos, as vítimas foram 47 cães, um gato e três galinhas. Um urubu que comeu de uma das carniças, acabou aumentando a conta dos mortos.

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    O extermino cruel, ocorreu na última sexta-feira, nas localidades de Bângala e Bolandeira, em São Bento do Inhatá, distrito de Amélia Rodrigues, a 84 quilômetros de Salvador. O autor, ao contrário de suas vítimas, é um animal racional, supostamente.
    Pior: além de ser humano, o acusado é ex-prefeito da cidade vizinha, Conceição do Jacuípe e tem uma fazenda em São Bento do Inhatá. Dezenas de testemunhas descreveram o momento em que, usando uma motocicleta tipo "Biz", o fazendeiro João Barros de Oliveira, conhecido como João de Roque, circulou pela região e cometeu o massacre.
    O serial Killer não escolheu raça, tamanho ou cor. Com uma luva e um saco amarelo cheio de carne, arremessou as "iscas" envenenadas sobre muros e cercas dos terrenos. A carne, segundo moradores, era de um boi que João teria matado só para cometer o "cãocidio". O que motivou tal atitude? Os moradores acreditam que foi o simples fato de alguns cães vizinhos terem atacado um dos seus bezerros. Quando perceberam o que João fazia, os moradores avisaram a PM. Aí já era tarde demais. 
    O veneno colocado nos pedaços de carne era tão forte que, ao comer os restos mortais dos cachorros, um urubu morreu. Algumas pessoas passaram mal, inclusive um policial militar, devido ao odor horrível que exalava das carnes. 
    Em protestos, donos de cachorros mortos, jogaram seus animais na propriedade de João de Roque. Um cão foi pendurado na cancela da fazenda.
     O funcionário do sítio que fica defronte à propriedade de João de Roque não segurou as lágrimas quando lembrou do vira-lata Wel, um dos cachorros que não resistiu ao veneno. Ontem pela manhã, Agnaldo alimentou só o pastor preto Hulk e o outro vira-lata, Scooby. "Quando vi que Wel não estava mais com a gente, não aguentei. Ele era especial. O nosso cão de guarda. Foi muito triste ver ele vomitando até morrer!" Disse em prantos.
    O dono do sítio, o administrador Raimundo das Neves, também estava desolado. "Minha filha chorou a manhã inteira. Wel era como se fosse um membro da família." Apesar do medo de retaliação, o funcionário não conteve a raiva. "Sei que corro risco de vida, que ele tem dinheiro, mas a gente não pode deixar isso ficar impune."
    Mas nenhuma dor era como a de dona Jacira dos Santos, 64 anos. A aposentada perdeu 7 cães na matança. Biscuí, Latóia, Jack Chan, Preta, Zóio Furado, Quatro Ôio e Raquele. 
    Ela lamentou, com a voz pesarosa. "Latóia veio babando em cima de mim com aquela carinha de quem pede socorro, sabe? "
    Conta ela, ainda chocada. "Sargento, de apenas um mês de vida, foi um dos sobreviventes. Órfão, perdeu a mãe, a cadela Raquele. Já Pintada, tinha acabado de ter uma ninhada de oito cachorrinhos. Envenenada, resistiu. Mas não pode amamentar. Ela ainda está tremendo... Pode passar pros filhotes."
    
                                                                                         Página - 17


    Ainda há pedaços de carne espalhados por aí. Agora, o maior temor dos moradores é que crianças entrem em contato com o veneno.
    O comerciante João José Pires, o Dendê, que perdeu o pit bull Preto, teme que seu outro cachorro também morra. "Salvei ele dando leite com azeite doce. Já chorei a morte de um animal. Não quero chorar de novo. Alguém tem que recolher tudo isso espalahdo pela aí," sugeriu.
    Apesar das testemunhas oculares, o fazendeiro e ex-prefeito de Conceição do Jacuípe negou ao "CORREIO" todas as acusações. 
    "Não sei porque estão me acusando disso. Vou apurar e depois te respondo. Eu tenho cachorro. Gosto de animais", garantiu por telefone, João de Roque, que não mais apareceu em Amélia Rodrigues. "Ele tem de ser muito homem pra voltar aqui no São Bento", disse um morador.
    "Na propriedade que há mais de vinte anos mantém em São Bento do Inhatá, João de Roque cria gado, porcos e galinhas. A família sempre teve posses e poder. Um homem como ele acha que pode passar por cima de tudo e de todos", afirmou a vereadora Maria Quitéria Ferreira, que teve a poodle Guguinha, morta na chacina.
    O delegado fez uma pausa na leitura e disse, para um São Lázaro completamente estarrecido:
    - Para finalizar, meu velho, vamos as providências que se está tomando para por essa barbaridade em pratos limpos.
Polícia recolhe carne para perícia. Passava das 11 h de ontem, quase quatro dias depois do massacre, e o carro do Departamento de Polícia Técnica [DPT] finalmente se dirigiu para onde tudo ocorreu. Os policiais tinham a companhia do secretário de Agricultura e Meio Ambiente da prefeitura, Mario Augusto Filho. No local, foram recolhidos pedaços de carne e enviados para a perícia, em Salvador. Ainda não se sabe que tipo de veneno foi usado. O delegado José Antonio Costa, disse que ainda vai ouvir o acusado e os donos dos cachorros. João de Roque pode responder por crime de maus-tratos previsto na lei ambiental 9605/98. Se punido, pode pegar de três meses a um ano de prisão. ONGs de proteção animal prometem ação coletiva de indenização por danos morais. 
    O delegado levantou-se, dobrou o jornal e disse:
    - Bem, meu velho, vou dar uma chegadinha na minha sala - Um dos cães que não desgrudava do velho, se chegou, ficou de pé e apoiou as duas patas sobre o policial. Este comentou, afagando a cabecinha dele. - Sabe, São Lázaro, percebi que este cão meio amarelinho, mais parece uma sua malinha de mão; não sai do seu lado, um instante que seja!
    O velho respondeu:
    - Ele chama-se Mascote, Dr. Bandeira. É pegado comigo, desde pequenino. Já está com uns 12 anos e só dorme junto de mim. Esse pegadio dele, Dr. Bandeira, com certeza é devido as circunstâncias em que veio para a minha companhia. 

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    Jamais esquecerei o tamanho da crueldade praticada por aquela madame, dona dele. Uma desumana - o velho deu asas a imaginação... - Era uma manhã de sexta-feira. Eu passava pela margem do Dique do Tororó quando, uns cinquenta metros à minha frente, parou junto ao meio-fio, um automóvel de luxo, quatro portas, com chofer particular, engravatado e tudo. Ele saltou, abriu a porta de trás para a patroa e foi, no fundo, abrir a tampa da mala. A madame, elegantemente vestida, se aproximou da mala e pegou uma cesta. Em seguida, caminhou para a margem do dique, naquela época, repleta de enormes folhas de baronesas, sobre o espelho de água.
    Quando ela chegou perto da água lodosa atiçou, o mais longe que pôde, a cesta com o que tinha dentro. Fez isso, retornou ao carro e foram embora. A princípio, Dr. Bandeira, julguei que era lixo dentro da cesta e ela simplesmente estava se descartando. Também não entendi porque não mandou o chofer fazer isso. Foi aí que percebi ela afundando devagar, devido a ter caído sobre as folhas das baronesas. Vi também, quando me aproximei da margem, que a água dentro da cesta estava agitada! Havia bichos vivos nela. Aí me joguei na água com roupa e tudo. Nadei como um desesperado para salvar o que estivesse lá dentro. Mais perto, percebi que era uma ninhada de cachorrinhos e, somente Mascote, boiou sobre uma folha de baronesa. Peguei ele, também já afundando. Mesmo, com ele na mão, ainda mergulhei para ver se conseguia salvar mais algum. Não consegui: os coitadinhos agitados, agoniados, morrendo afogados, se infiltravam muito rápido na lama do fundo do dique. Também a escuridão lá embaixo dificultou muito. As baronesas não deixavam passar a luz do sol. Apenas consegui pegar a cesta vazia. Retornei para a margem e botei Mascote de barriga pra baixo, sobre a grama e fiz ele vomitar toda água que bebeu.
    Ao vir embora, larguei a cesta lá. Ela lembrava mais um caixão mortuário - Mascote lambeu a mão do velho que fez uma pausa no relato e sorriu dizendo. - É sempre assim, Dr. Bandeira. Quando recordo esse fato, Mascote se desmancha em carinhos e dengos comigo. Só parece mesmo é que os cães relembram de coisas quando ainda eram bebezinhos. Pois Dr. Bandeira, até hoje Mascote tem verdadeiro horror de tomar banho. Quando me ver pegar uma mangueira ou um balde com água, o danadinho chispa fora. Por isso, tenho de amarra-lo antes. Tenho certeza que esse seu procedimento, é trauma daquele dia. Apesar de recém-nascido e ainda de olhos fechados, guarda no seu sub-cociente, aquele ocorrido. Daí, creio, veio esse pegadio comigo. Mascote é, como assim dizer... o meu 'braço direito'. Quando levo cães de rua pra Pirajá, estes ficam lá com os outros. No dia seguinte, quando retorno às ruas Mascote me acompanha. No início, até o prendia mas, o coitadinho gemia o dia inteiro. Ele só se sente bem, quando está ao meu lado.
    Mas meu velho - estranhou o delegado, - porque essa madame cometeu essa crueldade com os filhotinhos? Por mais que procuro não encontro uma resposta convincente para essa terrível malvadeza!
    
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    - Olha, Dr. Bandeira - disse o velho, - eu deduzo o seguinte: 
Mascote é um vira-lata, assim como os seus irmãozinhos. Presumo que a mãe dele é de raça pura e, numa 'escapulida', cruzou com o pai deles, vira-lata. Então, quando ela deu cria, a madame ao ver a viralatada, ficou injuriada e partiu para o extermínio total. Veja que ela estava tão revoltada que não confiou o seu chofer levar a cesta pra jogar no dique. Deve ter pensado: o chofer pode se penalizar, disfarçar e não jogar a cesta num lugar profundo. Com certeza foi isso que aconteceu.
    O delegado resmungou:
    - Madame miserenta essa. Miserenta mesmo!
    Em seguida despediu-se do velho com tapinhas nas costas e se afastou.
    Mais tarde, sentado atrás da sua mesa, o policial disse para si mesmo, em pensamentos;
    "Espero que o santo São Lázaro, a quem ele tanto ama, ajude que o homem escape e melhore o mais depressa possível. Isso atenuará mais um pouco a carga que, certamente, a família da vítima fará contra ele. Dessa vez - lamentou, - muito pouco poderei fazer por esse velho, muito pouco mesmo."
    Voltou-se para a porta ao ouvir alguns toques.
    - Sou eu Dr. Bandeira, Maltez.
    - Entre, Maltez.
    - Dr. Bandeira - disse o agente entrando na sala, - chegou um homem aí fora num carrão com chofer particular e tudo. Disse que quer falar com o delegado titular imediatamente, sobre o incidente ocorrido hoje a tarde, com o seu patrão, no Tanque.
    - Era isso o que eu estava temendo, Maltez. Deve ser o advogado da família da vítima. Volte lá e mande-o entrar.
    O agente retirou-se. O delegado fechou a mão direita e passou, seguidas vezes, o punho fechado na ponta de um prego, exposta sob a tábua da mesa. Quando viu os riscos nas costas dos dedos sangrando, pegou um lenço no bolso do paletó, envolveu a mão ferida e disse para si mesmo, esperando o homem: "Bem, isso talvez amanse um pouco a fera."
    O cidadão que adentrou à sala, vestia um impecável terno, colete e gravata. O delegado, educadamente pô-se de pé e antipatizou-se com o recém-chegado, às suas primeiras palavras: 
    - Boa tarde, delegado Epaminondas Bandeira, titular desta Circunscrição Policial. Permita que me apresente: sou Agamenon Limeira, advogado, procurador do comendador Badaró e consequentemente de toda a Organização Paranhos e Badaró S.A. aqui está a minha identificação. 
    - Muito prazer, Dr. Agamenon, é desnecessário que se identifique. Esteja inteiramente a sua disposição nesta delegacia.
    O advogado guardou a carteirinha da O.A.B. no bolso interno do paletó e estendeu a mão direita espalmada para o policial que a encontrou com a sua esquerda. Após o aperto de mão, o recém-chegado foi incisivo:

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    - Dr. Epaminondas bandeira, vamos logo ao que realmente interessa, pois detesto rodeios e meios termos. O que me trás aqui a esta Circunscrição Policial é o fato doloroso ocorrido, como o Sr. sabe, com o meu patrão, hoje à tarde.
    - Sei, Dr. Agamenon, também lamento pelo comendador Badaró.
    - Eu e a família dele lamentamos mais ainda, delegado, e quero deixar bem explicitado que acompanharemos o inquérito policial em todas a suas minucias. Tudo faremos, mas tudo mesmo, para que nada seja facilitado a esse quase assassino que se encontra sob sua custódia. Pelas informações parciais, coletadas por mim, o homem, apesar da idade avançada, é uma mistura de louco, desordeiro e assassino...
    - Dr. Agamenon - interrompeu o delegado, num tom de voz, meio confidente, - quando o Sr. falar desse velho marginal aqui, fale um pouco mais baixo. Tem uns repórteres aí fora, babando por um furo jornalísticos para safar o dia e não na minha delegacia que eles irão conseguir isso. Pois, depois do que acabei de fazer com o safado desordeiro, seria como um presente do céu para eles.
    - Francamente, Dr. Epaminondas - estranhou o advogado, - não estou lhe entendendo...
    - Bem - prosseguiu o delegado, retirando o lenço sujo de sangue envolto na mão direita, mostrando para ele, abaixando o tom da voz e dizendo, - o Sr. está vendo esta mão esta mão?
    - Sim, os dedos estão sangrando! O que aconteceu com ela?!
    O policial riu de forma sarcástica e disse:
    - Dr. Agamenon, se a minha mão está nesse estado, imagine então como deve estar o rosto do desgraçado velho que agrediu o comendador.
    - Que?!! - O advogado exultou - Mas isso é extremamente importante! O que acabo de ouvir do Sr. é importantíssimo! Toda família Badaró exultará, quando souber dessa agradável novidade! Devo lhe confessar, Dr. Epaminondas que, pelas informações obtidas por mim, no local do incidente, julguei que o velho marginal fosse bem visto pelo Sr. e estivesse sendo mimado aqui. Agora reconheço que andei tirando conclusões errôneas e precipitadas
    Pois é, Dr. Agamenon, lá embaixo, no Tanque e no meio da multidão, tratei o safado velho com luvas de pelica. O Sr. sabe muito bem que, espancamento em público repercutiria muito mal, principalmente agora com essa gentalha dos direitos humanos aí nos nossos calcanhares. Sem falar na mídia, escrita e falada, que cairiam em cima de mim com unhas, letras, imagens e dentes. Agora mesmo, como já lhe falei, se der uma olhadela aí fora, verá que está assim de repórteres - fez um gesto característico, juntando por seguidas vezes, as pontas dos dedos da mão esquerda. - Eles farejam um deslize nosso a quilômetros de distância. 
    - Tem razão, Dr. Epaminondas - concordou o advogado, - eu só fiquei meio na dúvida porque me disseram lá embaixo, que o velho desordeiro queria enfrentar um monte de policiais com uma estaca, no entanto, quando o Sr. chegou ele se portou como um carneirinho manso! por isso...

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    - O agente Getúlio que escutava o diálogo dos dois pela porta entreaberta da sala contígua, percebeu que o delegado precisava de ajuda. Sem pensar duas vezes, entrou de supetão, esbaforido, no recinto, interrompendo o advogado, que até assustou-se:
    - Dr. Bandeira, me desculpe atrapalhar a conversa de vocês, mas o caso é pra lá de grave!
    O delegado mostrou-se preocupado:
    - O que aconteceu, Getúlio?
    - O velho marginal da confusão do Largo do Tanque está vomitando sangue! Bem que avisei pro Maltez não usar a soqueira de aço! Bastava o Pau de Arara e os choques elétricos! O velho está muito fraco e sem contar também com a idade avançada e... O que agente faz com ele? É preciso removê-lo para uma emergência!!
    O delegado ponderou, simulando preocupação:
    - Se sairmos agora, com ele sangrando, os jornalistas lá fora, irão descobrir o massacre!
    - Então vou retornar para a cela - disse o policial, - porque do jeito que é o Maltez, vai findar aleijando ou matando o miserável velho!
    - Vai Getúlio, creio que, somente à noite, poderemos removê-lo para o Pronto Socorro, sem despertar suspeitas.
    O policial retirou-se apressado. O delegado comentou para o advogado:
    - Como o Sr. pode ver, Dr. Agamenon, os rapazes também me dão uma mãozinha. 
    O advogado alisou o bigode e disse, sem dissimular o contentamento às últimas notícias do agente Maltez:
    - Dr. Bandeira, vou me comunicar com o comendador Badaró e dizer-lhe como está sendo tratado aqui, o seu agressor. Sei que ele se sentirá muito melhor depois de saber disso. E aproveito para lhe dizer, Dr. Bandeira; o meu patrão é extremamente generoso. Principalmente em se tratando de um caso como esse. Garanto que o Sr. não se arrependerá do que está fazendo - fez uma breve pausa, introduziu a mão direita no bolso interno do paletó, trouxe de lá um cartão prateado, com letras e números bordados a ouro, entregou ao delegado e prosseguiu. - A minha função nesta delegacia, seria acompanhar tudo, mas tudo mesmo que se relacionasse a esse velho marginal e desordeiro. Mas, como o Sr. e seus subordinados o estão tratando de forma merecida, então deixo-o nas suas mãos e despeço-me. Os telefones do nosso escritório, residência e o meu celular privativo, estão nesse cartão que lhe entreguei. Sempre estarei em contado consigo, Dr. Epaminondas. Tenho certeza que vamos nos dar muito bem, muito bem mesmo. Tenha uma boa tarde, delegado.
    - Boa tarde, Dr. Agamenon. E não se preocupe quanto ao tratamento que continuaremos a dispensar a esse agressor. Lhe garanto que ele vai pagar direitinho e com juros altos, o que fez ao comendador Badaró. Disso o Sr. não tenha a mínima dúvida.
    

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    - Dr. Epaminondas, aproveito para repetir que o meu patrão é generosíssimo e o não irá arrepender-se de nada do que fizer a mais, nesse velho marginal. Agora, delegado, em relação ao nosso cordial entendimento, eu lhe perguntaria, longe de querer ofendê-lo. O Sr. se importaria se, por acaso, um gordo cheque visado caísse, por descuido, nas suas mãos?
    - Dr. Agamenon - respondeu o delegado com ares de ofendido, - aqui nesta delegacia, para tratarmos gente perversa e ruim como elas merecem, não é preciso aceitar ofertas como essa! Cuidar dos cidadãos, dos homens de bem, como o comendador Badaró, é obrigação minha e da equipe eficiente que me cerca. De qualquer maneira, muito obrigado pela oferta.
    - Obrigado também para o Sr. delegado Epaminondas.
    Apertaram as mãos e o advogado se retirou. Dr. Bandeira sentou-se e disse, para si mesmo, em voz alta, olhando os dedos riscados de sangue:
    "E não fui pra frente, como ator, no teatro da universidade!"
    Chamou: 
    - Maltez.
    - Pronto, Dr. Bandeira - Respondeu o policial entrando na sala.
    - Onde está o Getúlio?
    - Deu uma saidinha. Foi tomar um refrigerante.
    - Escute, Maltez, quem me procurar ou ligar, diz que saí em diligência ou invente qualquer desculpa - Verificou o relógio no pulso. - Até às oito horas não estou pra ninguém, salvo num caso de emergência, certo?
    - Certo, Dr. Bandeira, pode descansar tranquilo que ninguém vai lhe incomodar. 
    O delegado recostou-se na cadeira, estirou as pernas apoiando-as na quina da mesa e disse, após um longo e preguiçoso bocejo:
    - Maltez.
    O policial hia saindo, parou e voltou-se:
    - Sim, Dr. Bandeira.
    - Lá pras oito e meia, prepare uma viatura com 'gaiola'. Vamos levar São Lázaro com os seus cachorros. Mora pros lados de Pirajá. À noite vamos conhecer a moradia desse velho e sua imensa 'família'.
    Maltez encostou a porta e foi até a frente do prédio da delegacia. Alguns veículos com as logomarcas das suas respectivas empresas jornalísticas, gravadas nas portas, estavam estacionados por perto. Jornalistas, cinegrafistas e repórteres, conversavam entre si. Um deles, ao perceber a presença do policial, assobiou e levantou o dedo polegar. Maltez abaixou o dele, num gesto de resposta negativo. 
    - Nada pra gente, pessoal - disse o repórter para os outros, - aquele ali é o agente Maltez, meu amigo. Qualquer novidade no pedaço, garanto que não ficaremos no escuro. 
    Maltez retornou ao interior da delegacia e se dirigiu à cela, onde estava velho São Lázaro. 

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    Ele dormia e seus cães, também ressonavam sobre as folhas de papelões. De repente, algo entre eles chamou-lhe a atenção. Todos os cães dormiam, exceto um de tamanho médio, amarelo e um tanto peludo. Ele estava deitado na cama, junto do dono, olhos abertos, acompanhando com eles, tudo o que se passava a sua volta. Era Mascote. O policial, disse em pesamentos para si mesmo: 
    "Tenho certeza que esse trocinho está velando o sono do velho e dos seus companheiros."
    À noite, encaminhou-se para a sala do delegado. 
    - Dr. Bandeira, acorde, já passa das oito horas.
    O delegado abriu os braços se espreguiçando num comprido e relaxante bocejo, agradecendo:
    - Obrigado Maltez, alguma novidade?
    - Sim Dr. Bandeira, - respondeu - mas coisa corriqueira. Getúlio, como não tinha nada pra fazer aqui, saiu com o pessoal em diligência. A faca andou comendo solta, ali pro lado da Capelinha.
    - É lamentável, - disse o delegado e perguntou - e como está o velho São Lázaro, passou na cela dele?
    - Sim, Dr. Bandeira, algumas vezes, vim de lá agora. Ele está descansando; parece que dorme. Mais cedo me pediu pra ficar no pátio e tomar o restinho do sol da tarde, com os seus cachorros. Viu uma torneira, me pediu um pedaço de sabão e deu banho na viralatada toda. Depois lhe arrumei um pano e ele os enxugou, um a um. Passou o restante da tarde catando carrapatos e cuidando de algumas feridas deles.
    Fui na Casa Veterinária, aí em frente e consegui vários medicamentos de amostra grátis. foram mertiolate, pomadas e comprimidos anti-bióticos... Meu Deus, Dr. Bandeira! - exclamou - Que paciência desse velho! Ele cuida, arruma, os acaricia e conversa baixinho, como se eles o entendesse! Até entoa cantigas de ninar, para os mais novos dormirem, tal qual uma mãe ou um pai humano, amoroso, cuidam dos seus filhos. 
    Depois conversei com ele sobre ele. comentei dessa rabuda que esse Badaró quer lhe enfiar. Inclusive contei o que o senhor encenou, junto com o Getúlio.
    O delegado, ainda com as pernas sobre a mesa, perguntou:
    - E o que ele achou disso tudo, Maltez?
    - Disse que se o homem não tivesse matado seu cachorro por pura perversidade, nada disso teria acontecido. Disse também que o senhor é um santo que, por um descuido divino, veio parar na polícia.
    O delegado entreabriu os lábios num leve sorriso. Maltez indagou:
    - O senhor o conhece há muito tempo?
    - Desde que me entendo na polícia, Maltez. Agora sou eu quem pergunta: qual é o policial, civil ou militar que, numa delegacia ou quartel desta cidade, não conhece o velho São Lázaro ou, pelo menos, ouviu falar dele. Você não conta Maltez, pois veio transferido há pouco do interior. Mas duvido que um policial aqui da capital, com mais de um ano de serviço, desconheça esse velho amalucado.

                                                                                         Página - 24
    

    - E ele já aprontou mais alguma confusão como essa de hoje?
    - Escuta Maltez, - disse o delegado - pra lhe falar a verdade, não relembro bem se foi a última ou a penúltima, o arregaço que ele aprontou e que bota essa de hoje, debaixo do chinelo!
    - Papagaio, Dr. Bandeira. Pior do que a de hoje?! Me conta...
    - Pois foi, Maltez, a destruição do Canil Municipal, para onde eram levados os cães vadios, recolhidos nas ruas pela 'Carrocinha'.
Nessa época, ainda existia a 'Carrocinha' e, por lei, se cremava os cães sem dono e que não eram reclamados - o delegado fez uma breve pausa, deu asas a imaginação e prosseguiu. - Isso já se passou muitos anos...
    Nesse dia o velho aprontou o diabo. Tocou fogo na 'Carrocinha', uma caminhonete furgão adaptada e botou mais de vinte funcionários pra correr. O encarregado da cremação quis encarar e ficou num estado deplorável, pior do que esse Badaró de hoje!
    - Nossa! - Exclamou Maltez.
    - E não foi somente isso não - Prosseguiu o delegado. - Arrebentou e destruiu completamente tudo dentro do laboratório. Com uma barra de ferro arregaçou o que encontrava pela frente. Dava a impressão que um tanque de guerra tinha passado por ali!
    Quando cheguei lá, junto com colegas aqui da 4ª e de outras delegacias, encontramos um quadro desolador e, ao mesmo tempo, comovente.
Em meio a fumaça e destruição, demos com o velho São Lázaro sentado, com os joelhos dobrados, junto da porta aberta do forno crematório. Estava com as mãos cobrindo o rosto e o seu corpo se estremecia em soluços. Não chegara a tempo de salvar aquela fornada de cães. O forno estava aceso. percebemos que o velho ainda tentou salvar, daquele inferno incandescente, os mais próximos da porta, pois estava com os cabelos da cabeça, barba e braços. completamente sapecados.
    Dando tapinhas compreensivos no seu ombro, falei, um tanto envergonhado. Meu velho, você está preso porém, lhe asseguro: pra onde você vai, ninguém, mas ninguém mesmo, tocará com maldade, um fio dos seus cabelos. Ele ficou de pé e, olhando para o forno, balbuciou entre lágrimas, emocionando todos ali presentes. Adeus filhos, vovô Lázaro não chegou à tempo.
    A ordem superior era levá-lo direto para o Hospício. Eu o fiz, mas pedi ao diretor do Juliano Moreira, amigo de infância e mais tarde colega de Universidade, que cuidasse daquele velho com se estivesse cuidando de mim. Imediatamente ele foi levado para um local separado dos outros internos.
    Bem, pra encurtar, após uma bateria de exames minuciosos, ficou comprovado que o velho São Lázaro não tem nenhum desvio mental. Pelo menos à luz da ciência médica.
    Quando foi autorizada a sua transferência para a Casa de Detenção, o velho, antes dessa transferência, após terem se descuidado na vigilância sobre ele, fugiu. Sabe como é, Maltez; amigos de infância são para essas coisas, não é? Ou então não se seria amigo.
    
                                                                                         Página - 25

    O agente sorriu e disse:
    - Sei, sei Dr. Bandeira. O dedo do senhor, junto com o dedo do diretor amigo de infância, andaram metidos nessa fuga, acertei?
    Agora foi o delegado quem sorriu matreiro, pedindo:
    - Maltez, vá arrumando a viatura, vou ver o velho.
    Levantou-se e se encaminhou para a cela.
    - Boa noite, São Lázaro - Saudou ultrapassando a porta de grade.
    - Boa noite, Dr. Bandeira - Respondeu o velho.
    - Vamos dar uma chegadinha onde você mora, em Pirajá e levar seus cães.
    O velho se alegrou:
    - Obrigado, Dr. Bandeira, preciso mesmo ir em casa e, se o senhor me dar um tempinho, faço comida, pelo menos para os doentes e os mais fracos. Também estou preocupado com a Pretinha. Ela, se ainda não pariu, vai dar a luz até a meia-noite de hoje. Quando sai pela manhã, ela já estava nervosa, inquieta, roendo tudo à sua volta. Geralmente esse nervosíssimo na cadela prenha, Dr. Bandeira, é um sinal característico de que já está se aproximando a hora H.
    - Meu velho - indagou o delegado, - de quantos cachorros você cuida atualmente?
    O velho pensou por um instante e respondeu:
    - São mais ou menos uns duzentos, Dr. Bandeira. Isso sem contar com esses aqui e os filhotes da Pretinha, se ela já descansou.
    O delegado exclamou:
    - Putsgrila, meu velho, que senhora cachorrada! Eu sabia que você cuidava de muitos cães, mas jamais imaginei que fossem tantos!! E como você faz para alimentar essa imensidão de cães?
    O velho sorriu e, quando hia responder, Maltez se aproximou, interrompendo:
    - Dr. Bandeira, o camburão já está pronto, a porta traseira aberta.
    - Ok Maltez. E o pessoal da imprensa, ainda estão por aí? Se positivo vamos ter de esperar até limpar a área.
    - Nada, Dr. Bandeira. Saíram todos. O pau andou quebrando lá pros lados da Suburbana. Me parece que um sobrinho andou sangrando o tio e a tia que lhe negaram dinheiro pro fumo. 
    - Bem - disse o delegado, - então vamos aproveitar e sair com São Lázaro e seus vira-latas - pediu. - Meu velho, ponha os cães na 
gaiola e você vai conosco lá na frente pra nos ensinar o caminho de Pirajá pra sua casa.
    A medida em que os cachorros subiam, ficavam um tanto inquietos, devido ao dono não estar perto deles. O velho disse, acalmando-os antes de Maltez fechar a porta:
    Se aquietem, meninos, vovô Lázaro vai lá na frente, bem pertinho de vocês. Se aquietem.
    O escrivão Manoelão se aproximou e perguntou:
    Alguma ordem, Dr. Bandeira?
    
                                                                                         Página - 26


    - Sim Manoelão - respondeu apontando o prédio da delegacia, -
pra todos os efeitos, o velho São Lázaro está trancafiado aí dentro, Ok?
    - Ok, Dr. Bandeira, tou sabendo de tudo. Maltez bateu um rápido papo comigo - Voltou-se para o velho e saudou. - Oi São Lázaro.
    - Oi Manoelão, tudo bem com você e sua família?
    - Vai tudo bem, São Lázaro. Peguei serviço à pouco e fiquei sabendo do rebu no Largo do Tanque. Como sempre, fizeram alguma especie de maldade com um dos seus cães, não foi? Estou sabendo.
    O velho não respondeu: limitou-se a baixar a cabeça.
    O delegado chamou:
    - Vamos meu velho. Até mais tarde, Manoelão.
    A viatura arrancou, rumo ao bairro de Pirajá.

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                                                    CAPÍTULO - 02

    
    Após a igrejinha do bairro de Pirajá, seguindo pela estrada velha de chão batido, mato de um lado e do outro, o delegado e seu ajudante divisaram à esquerda, a silhueta de um enorme barracão coberto com folhas secas de palmeiras, no meio de grandes árvores frondosas.
    A brisa noturna soprou uma nuvem que se deslocou para o lado, deixando a lua clarear todo o terreno e a moradia do velho São Lázaro, em toda sua extensão. Na frente do barracão, uma cerca de varas juntas, se estendia por mais de cem metros, margeando a estrada estreita de barro e pedrinhas.
    - É aqui, Dr. Bandeira - disse o velho, apontando para o barracão.
    O policial parou a viatura no meio da cerca, junto a um pequeno portão de tábuas. Os três saltaram e o velho se adiantou para abrir o portão. Maltez abriu a porta traseira. Os cães saltaram e correram para perto do dono.
    Dentro do terreno, pelas frestas da cerca, dezenas de cachorros espreitavam, curiosos, o movimento do lado de fora. Estavam ansiosos. Seu dono saíra desde o amanhecer e jamais demorou tanto. Sempre retornava com o entardecer.
    Apesar da claridade do luar, não distinguiam direito aqueles vultos se movendo em volta do veículo recém-chegado. A natureza mãe, ao contrário das corujas, lhes dotou de pouca visão noturna. Mas, como que para lhes compensar essa deficiência, deu-lhes o dom do faro.
    Quando o velho destravou a tranca do portão, abrindo-o e fazendo o vento levar o seu cheiro até eles, ouviu-se latidos e grunhidos nervosos. Em seguida se precipitaram para fora do terreno. Segundos depois, o carro o velho e os policiais estavam completamente cercados. Os cães saltavam e pulavam de alegria, tentando alcançar e lamber o rosto do dono. Alguns mordiam docilmente os seus calcanhares e outros puxavam, com os dentes, o tecido das pernas da calça remendada. Nenhum deles estranhou a presença dos policiais. É como se dissessem: se está com o nosso dono, são nossos amigos.

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    O velho se agachou e exclamou, com os olhos úmidos, tentando afaga a todos:
    São Lázaro do céu, como amo vocês, como lhes quero! Quanto receio senti pensando que não hia ver mais vocês hoje hoje.
    O delegado e Maltez mantinham-se com uma expressão entre atônitos e abobalhados, em meio àquela imensidão de cães. O velho pô-se de pé e disse:
    





    
     
    
    Em digitação e revisão.

   

    
    
    



     
    
      
     



    


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