segunda-feira, 20 de junho de 2016

A Dor do Palhaço Vassourinha


Naquela noite de um domingo verão, passava pouco das oito horas.  O Circo Nerino, armado na Praça Camacã, na cidade de Itabuna, sul da Bahia, estava lotado. Suas atrações deixavam, de queixos caídos, crianças e adultos. Havia o globo da morte, equilibristas, rumbeiras, mágicos, futebol de cachorros, trapezistas e tantas outras coisas. Mas, sua atração principal, era o palhaço Vassourinha, ansiosamente esperado pela plateia. As crianças então, ficavam irritadas, indóceis, ante qualquer atraso que fosse do palhaço.
O menino Pedrinho, de pouco mais de 10 anos, estava sentado entre o pai e a mãe, na primeira fila das cadeiras, perto da mureta em forma de arco que separa a plateia do picadeiro, logo após os camarotes. Comendo pipocas, ansioso ele insistia:
- Papai, mamãe, quando começa o espetáculo? Não disseram na bilheteria que era oito horas? Pois já deve estar passando disso.
- Calma filho - disse o pai, - daqui a pouco começa. Só está passando alguns minutos das oito. Paciência!
- Mas que demora! E depois que começar, mamãe, Vassourinha vai demorar de aparecer?
- Não vai não, acho. Mas tenha calma, menino! 
De repente, a orquestra ao lado direito da cortina, toca o prefixo anunciando, para alívio geral, o início de mais um espetáculo do Circo Nerino.
Um homem usando smoking vermelho e cartola preta, chega ao pequeno palco de madeira, entre o picadeiro e a cortina, pega o microfone no tripé e diz, com gestos eloquentes:
- Senhoras, senhores, crianças... boa noite. Vai ter início mais um espetáculo do tradicional Circo Nerino. Como atrações teremos...
A plateia interrompeu o apresentador, pedindo em coro:
"Vassourinha, queremos Vassourinha. Vassourinha, queremos Vassourinha"...
O homem sorriu e brincou:
- Bem, se o distinto público prefere purgante, então aí vem ele - fez uma breve pausa, dramatizando e prosseguiu, - Agora com vocês, o impagável, o hilariante, o inimitável... VAAASSOOOURIIINHAAA.
Quando o palhaço saiu detrás da cortina, já tropeçando nalguma coisa, caindo e, repentinamente ficando de pé, a plateia explodiu em palmas e risos. Vassourinha esperou o público silenciar, o que levou algum tempo e disse:
- Gente, vocês não imaginam: pois não é que Vassourinha está amando. Hoje marquei o primeiro encontro com o meu amor aqui, neste picadeiro. Já tomei meu banho anual e me perfumei da cabeça aos pés. Mas, apesar de cuidar desses mínimos detalhes, por gulodice, errei de forma gravíssima. Antes de sair de casa comi uma baita feijoada. O pior de tudo é que, justo no momento que o meu amor vai chegar, a barriga começou a revirar por dentro... Ai, aaaii, aaai!
Uma moça muito bonita, cabelos de tranças, ar de ingênua, vestida de camponesa, entrou no palco e sentou-se num banco, tipo de jardim, no meio do picadeiro. Vassourinha exclamou:

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- Chiii gente, olha ela ali e chegou na hora marcada! O diabo é que a barriga tá piorando, ameaçando "pancadas de chuva com trovoadas!"
Aproximou-se da recém-chegada e elogiou:
- Rosita, como você está linda! 
Ela sorriu, provocando duas covinhas nas faces e respondeu:
- Obrigada pela gentileza, Vassourinha. E você está um gato.  Esse perfume francês então, que está usando, me deixa louquinha!
Em seguida , ainda sentada, ela estirou o braço para que o palhaço segurasse a sua mão. Ele pegou-a delicadamente e, ao fazer uma leve reverência, o som geral dos alto-falantes jogou no ar o ruido característico de um sonoro pum, ao mesmo tempo que um enorme jato de talco brotou dos fundilhos de Vassourinha. Os espectadores quase vão à loucura sorrindo pra se acabar. E sorriram mais ainda quando a moça, num gesto de indignação, disse, torcendo o nariz com uma das mãos:
- Eu falei perfume francês? Você parece que está usando é essência de urubu - plantou a mão no rosto de Vassourinha e se mandou resmungando! - Suma da minhas vistas, sua carniça ambulante.
Vassourinha lamentou em meio as gargalhadas da plateia:
- E eu lá sabia que aquela feijoada ia provocar trovoadas e tempestade!
Novamente outro sonoro pum nos alto-falantes e um novo jato de talco tomou o picadeiro. A moça apressou os passos e ultrapassou a cortina quase correndo.
Vassourinha simulou uma queda e, disfarçadamente, enxugou os olhos molhados, no momento em que o mágico se aproximava dele. O menino Pedrinho comentou para o pai: 
- Papai, parece que Vassourinha tá chorando. Ele já enxugou as lágrimas no rosto umas duas ou três vezes. Olha lá, acabou de enxugar de novo! Ele quando cai, aproveita e espreme os olhos molhados, sem que ninguém perceba. Na pintura que enfeita seu rosto, já tem dois trilhinhos que as lágrimas fizeram nas suas faces!
- filho - tentou explicar, - aquilo são lágrimas provocadas por suas próprias palhaçadas. Quando sorrimos em demasia, às vezes nos brotam, de forma involuntária, lágrimas como as que Vassourinha está deixando correr. Provavelmente ele rir das suas próprias diabruras, daí as lágrimas.
O menino calou-se. O palhaço fez mais algumas brincadeiras e, em seguida, desapareceu por trás da cortina, debaixo de assobios, palmas e sorrisos, deixando o mágico prosseguir com o espetáculo.
Pedrinho pediu: 
- Papai, vou no sanitário fazer pipi, atrás da geral, está bem? Volto já.
- Vou contigo, filho.
- Precisa não, papai, é tão pertinho. Muitas crianças estão indo sozinhas - o pai concordou.
O menino, ao chegar perto do sanitário, percebeu um médico e um padre saindo de um veículo-residência, no fundo do circo, onde vários veículos e carretas furgões serviam de moradias para os artistas e funcionários da empresa de espetáculos. 

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Pedrinho urinou e, ao invés de retornar para junto dos seus pais, seguiu para aquele trailer, onde era intenso o entra-e-sai de pessoas do circo. E todos, tinham os semblantes tristes. O menino se aproximou por trás do reboque, subiu num engradado vazio de refrigerantes e espiou por uma janelinha entreaberta. Estupefato, viu uma mulher deitada numa cama. Estava morta. Algumas velas queimavam sobre uma mesinha, ao lado. Várias pessoas do circo se encontravam à volta do corpo. Ajoelhado e abraçado à mulher, o palhaço Vassourinha chorava inconsolável!
A sua esposa, soube-se depois, já vinha adoentada com uma doença incurável e falecera, minutos antes de começar o espetáculo. O médico que saíra há pouco, não pôde fazer mais nada. O padre, ministrou a extrema-unção. Pedrinho, atônito, exclamou para sim mesmo, em pensamentos: "Meu Deus, por isso Vassourinha chora no picadeiro!!"
O apresentador que, no palco, anunciava as atrações, entrou no trailer, benzeu-se, pôs a mão no ombro do palhaço e recomendou:
- Vassourinha, não volte mais ao picadeiro. Você está sofrendo muito!
O palhaço respondeu entre soluços:
- Eu não posso frustar toda essa gente que grita o meu nome. O espetáculo tem de continuar. Ainda aguento umas duas ou três apresentações. 
Dentro do circo, o público voltou a exigir, gritando e batendo palmas:
"Vassourinha, queremos Vassourinha! Vassourinha, queremos Vassourinha!"
- Volte ao picadeiro e anuncie novamente o meu nome - pediu ao apresentador.
Triste, o homem retornou ao interior do circo. Vassourinha acariciou o rosto frio da mulher amada e disse, como se ela pudesse ouvi-lo:
- Volto daqui a pouco, querida. Sua alma me compreenderá.
Levantou-se e caminhou até uma penteadeira ao lado da cama. Sentou-se, assoou o nariz num pedaço de pano e enxugou os olhos e as faces molhadas. Olhando-se no espelho, refez a maquiagem. Em seguida voltou-se para a mulher e pediu aos colegas, antes de seguir para o picadeiro:
- Pelo amor de Deus, não a deixem sozinha, nesses momentos em que eu estiver fora.
Pedrinho saltou do engradado e correu de volta para junto dos seus pais, quando o apresentador anunciou:
- Com vocês novamente, distinta plateia, o impagável, o hilariante, o inimitável, o palhaço mais engraçado do mundo... VAAAAASSOOOURIIINHAAA!!! 
Vassourinha adentrou ao picadeiro fazendo, como sempre, o público delirar com o seu jeito desengonçado e transformando o rosto em caretas incríveis. Triste, o menino percebia ele, vez em quando, disfarçar e enxugar os olhos lacrimejantes. O pai indagou:

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- O que houve com você, Pedrinho? Toda plateia rir com as diabruras do Vassourinha. Somente você, agora, assim de repente, fica aí todo desligado dessa maneira! Você que é vidrado no Vassourinha. O que está acontecendo, filho?
No interior do circo, os vendedores ambulantes, além de algodão doce, maçã do amor, amendoins e outras guloseimas, vendiam também rosas. Ofereciam, principalmente, a jovens casais enamorados. Quando um deles passou perto de Pedrinho e seus pais, o menino juntou várias flores formando um buquê e pediu:
- Meu pai, pague estas flores pra mim, é muito importante!
- Filho...
O menino não ouviu o pai e pulou para dentro do picadeiro. Aproximou-se do palhaço fazendo-o parar o espetáculo e, com os olhinhos inundados de lágrimas, lhe entregou o buquê de flores dizendo:
- Vassourinha, aceite essas flores. São para a sua esposa.
A plateia começou a rir, diante daquele fato inesperado, julgando a súbita interferência fazer parte do espetáculo. Pedrinho entregou as flores e começou a chorar. Vassourinha, atônito recebeu o buquê. O público, ao ver o menino chorando convulsivamente, foi silenciando. O menino implorou, agora abraçado à cintura do palhaço:
- Vassourinha, você está sofrendo muito, não faça mais ninguém sorrir hoje. Sua esposa está lá no fundo do circo, morta, eu vi. Vá cuidar dela, lhe fazer companhia. Não faça mais ninguém sorrir hoje!
A imensa plateia continuava ainda sem entender bem o que se
passava. Vassourinha não suportou mais e começou a chorar copiosamente, apertando as flores de encontro ao peito esquerdo. O pai de Pedrinho, preocupado, se aproximou dos dois e perguntou:- Filho, o que está acontecendo?!
O menino respondeu entre soluços:
- Fui lá no fundo do circo, papai. A esposa de Vassourinha morreu há pouco. O bichinho está sofrendo muito, muito papai!
Vassourinha, ainda em lágrimas, quis dizer alguma coisa para a
plateia, mas a emoção embargou-lhe a voz.
Caminhou pelo picadeiro e sentou-se na mureta em arco da divisão do palco. Pedrinho, sempre segurando sua mão, ficou ao seu lado. Artistas e funcionários da empresa de espetáculos, puseram-se solidários, à sua volta. O apresentador, junto deles, pegou o microfone e começou:
- Distinto público, lamento dizer-lhes que a esposa do nosso querido Vassourinha, padecendo há meses de gravíssima doença, faleceu pouco antes de iniciarmos o espetáculo dessa noite. Ainda tentamos cancelar a sessão mas, o próprio Vassourinha, como nossa principal atração, pediu que déssemos andamento ao espetáculo. Disse que suportaria tudo, nas mais de duas horas de trabalho. Portanto quero propor à distinta plateia, trocar o espetáculo desta noite pelo do próximo domingo quando, se Deus permitir, o realizaremos de portões abertos.

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 Peço-lhes que nos concedam a noite de hoje para que velemos dignamente o corpo da esposa do nosso Vassourinha.
Os espectadores, tristes, começaram a deixar o circo. Dezenas deles faziam questão de passar perto do palhaço e dizer-lhe:
"Que Deus a tenha lá no alto, ao seu lado. Nossos pêsames, Vassourinha".
Quando o circo ficou vazio, o menino recomendou:
- Vassourinha, agora vá ficar ao lado da sua esposa. Hoje você não precisa mais fazer ninguém sorrir. As flores são um presente para ela, da minha parte e dos meus pais.
O palhaço suspendeu Pedrinho nos braços, beijou-o sujando seu rosto de maquiagem molhada e agradeceu:
- Deus lhe pague pelo que fez por mim, meu menino. Deus lhe pague em meu nome e no da minha mulher que acaba de partir. Eu não estava aguentando mais, não estava...
Pôs o menino no chão e, amparado pelos colegas, seguiu chorando, para o fundo do circo. Pedrinho segurou nas mãos dos pais e disse, enquanto caminhavam para a saída do circo:
- Agora Vassourinha pode chorar a sua dor sem ter a obrigação de fazer ninguém sorrir, não é papai? Não é mamãe?
- É sim, filho - respondeu o pai.
- É sim, filho - respondeu a mãe.
Caminhando, atravessaram a ponte sobre o Rio Cachoeira e seguiram para a residência, no bairro Conceição.


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