domingo, 5 de junho de 2016

Um Caminhoneiro, Uma Cruz, Uma Vingança



                                                          
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Primeiro lugar no "Concurso Literário Nacional de Histórias das Estradas," versão 1985, patrocinado pela São Paulo Alpargatas e com o apoio das revistas, "5ª RODA" e 
"O CARRETEIRO" que publicaram a história - São Paulo 1985.
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Quando terminei de tomar o cafezinho, após o jantar, eram umas oito horas da noite, numa pensãozinha às margens da BR-116 [Rio- Bahia], junto da via férrea em Itatim, antigo Tanquinho de Milagres, na Bahia.
Mal terminei de pagar a refeição para dona Nair, a proprietária, seu filho entrou no salão, largando uma bicicleta sem para-lamas no terreiro. Chegou um tanto ofegante e foi dizendo, num tom de voz admirado:
- Mãe, o homem ainda está lá junto da cruz, e como chora! Tá de joelhos e quando termina uma vela, acende outra!
- Quem é, Nair? - indaguei curioso.
- Olha Orlando - respondeu ela, - só pode ser o irmão do caminhoneiro assassinado naquele local, há alguns anos!
- Parece ser ele mesmo Nair - comentei, - e deve ter matado o sujeito pois, pelo que soube, jurou não descansar enquanto não fizesse isso. Na época, passei por aqui, dois dias após o crime. Dizem que foi uma coisa horrível! Era só o que se comentava pela estrada.
Nair balançou negativamente com a cabeça grisalha e disse:
- Foi a coisa mais bárbara, mais cruel e mais perversa que já vi nesses meus mais de 50 anos de vida!
- Dizem que ele deu carona pro assassino em Feira de Santana, não foi?
Nair não respondeu e caminhou até a porta da rua. Fui junto. Lá fora, noite escura sem lua, ela olhou para o lado onde ocorrera o crime e disse, com um leve tom de revolta na voz:
- Sim Orlando, deu carona pro sujeito em Feira. Ali adiante, o coitado parou o caminhão e foi fazer suas necessidades. O carona deve ter ido também, só que numa moita mais atrás. Quando o caminhoneiro se agachou, o desgraçado arrebentou a cabeça do rapaz com uma enorme pedra. A polícia deduziu assim, porque atrás do cadáver, havia tiras de papel higiênico e pegadas. Também nenhum sinal de luta. Fui lá ver o corpo. Parecia uma romaria de tantos curiosos. Agora triste, triste mesmo Orlando, foi quando o irmão dele que o esperava em Milagres, noutro caminhão, chegou no carro da polícia. Assim que saltou da viatura, caminhou para onde estava o corpo coberto com um lençol branco. Uma vela queimava ao lado. Ele seguia trêmulo, pálido e com lágrimas descendo pelas faces, Foi um silêncio total quando se agachou e levantou a ponta do lençol, descobrindo o rosto. Foi uma cena triste Orlando, triste! Sua voz ecoou dentro do coração de todos presentes quando exclamou chorando. Deus, meu Pai! Em seguida, sentou-se no chão e pôs a cabeça do irmão no colo. Chorava, dizia e repetia. "Meu irmãozinho caçula, o que fizeram com o meu irmãozinho!!"
Depois que peritos e policiais levaram o corpo, ele ajoelhou-se meteu as mãos na areia e voltou com elas cheias de capim, sangue e terra. Elevou os braços pro alto e disse, com os lábios trêmulos. "Um dia voltarei aqui, mas só farei isso quando estiver com estas mesma mãos, lavadas com o sangue do assassino do meu irmão."
Nair fez uma pausa e prosseguiu: 
  
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- Sabe Orlando, naquele momento ele não mais chorava. O homem era uma pilha de ódio! Bem, depois disso não se ouviu mais falar dele, até que hoje...
O rapazinho interrompeu a mãe e se adiantou:
- Pois é, eu tava armando umas arapucas por trás dumas moitas grandes, perto da cruz, quando parou um ônibus, vindo do lado do norte. Estranhei saltar alguém ali, num deserto daquele e já anoitecendo! Aí me escondi. Ele caminhou até a cruz, se ajoelhou, acendeu umas velas, começou a chorar e dizer. Acabou a minha peregrinação, acabou a minha peregrinação, repetiu. Saí por trás das moitas e vim embora sem ele me ver. Agora mesmo voltei lá e, do acostamento, vi que continua no mesmo lugar, agora sentado, junto da cruz. As velas continuam acesas.
- Orlando - disse Nair, - vê se entende uma coisa dessa: a vizinha é quem mata as minhas galinhas porque me falta coragem. No entanto estou contente em saber que o matador daquele caminhoneiro foi morto. Deve ter sido, não?
- Tá parecendo, Nair - respondi, - se ele jurou somente retornar aqui quando fizesse isso, é porque cumpriu o juramento. Eu também Nair, pela primeira vez na vida, a perspectiva da morte de uma pessoa, me deixa contente. Acho que foi a barbaridade do assassinato, a responsável por esse clamor de vingança que se abateu, de uma forma unânime sobre todos que viram o corpo ou souberam do crime. Nair, vou chegando e até a próxima.
- Vai com Deus, Orlando - recomendou ela.
Subi na cabine e prossegui viagem, noite a dentro. A cerca de dois quilômetros, apaguei rapidamente os faróis e vi na frente, à minha direita, um pequeno clarão das velas acesas, dentro do mato rasteiro. A curiosidade me roía por dentro. Não pensei duas vezes: liguei o pisca para a direita e parei no acostamento, em frente do local do crime. Saltei, fechei a porta a chave e me encaminhei para onde estava o colega, sentado numa pedra, ao lado da cruz. Tinha as pernas dobradas. Algumas velas queimavam semi-enterradas na terra. Perto da cruz me benzi, voltei-me para ele e saudei:
- Boa noite, colega.
Olhando para um lugar imaginário, dentro da escuridão, respondeu com a voz embargada:
- Boa noite colega, amigo.
- Olha - falei, - ao terminar de jantar, ali na pensão da Nair, o filho dela chegou montado numa bicicleta. Disse que armava umas arapucas quando lhe viu, aí junto da cruz. Deduzi com a Nair, que você deve ser o irmão do colega assassinado - ele não esperou que eu terminasse de falar e assentiu afirmativamente com a cabeça Prossegui. - Espero que o me perdoe a imiscuição na sua privacidade, na sua dor, mas acho que você não vai ficar aqui a noite inteira. Portanto parei para lhe oferecer uma carona, pelo menos até Milagres, menos de uma hora de viagem, ai pra frente. Ninguém, nem mesmo ônibus, vai parar pra você, aqui neste deserto e a essa hora.

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- Está bem, colega - agradeceu, - e muito obrigado. Você tem pressa? Pode esperar eu acender este resto de velas?
- Ora se espero - respondi solícito, - vou dormir mesmo em Milagres. Esteja a vontade.
Ele pegou as últimas velas, começou acendê-las e plantava na terra. Pedi:
- Posso acender uma?
- Pode e muito obrigado por mim e pela alma do mano.
Acendi a vela e finquei na terra. Nessa hora não aguentei mais: ou fazia a pergunta ou explodia por dentro:
- Você  matou o assassino? Cumpriu o juramento que disseram, fez aqui, no dia do levantamento do corpo?!
Ele nada respondeu. Terminou de plantar as velas na terra, voltou a sentar no mesmo lugar onde estava quando cheguei e disse, num tom de voz calmo, sereno:
- Se lhe respondesse afirmativamente, você entenderia porque espera e quer essa resposta. Se lhe respondesse que não, assim secamente, você não iria entender o porque da resposta negativa. Portanto, como disse não ter pressa, sente aí e lhe contarei tudo o que aconteceu, desde o dia do crime até hoje.
Sentei no chão ao lado das velas, cruzei as pernas e, ansioso, esperei ele começar...
- Quase todo mundo conhece a história, até o instante em que o corpo do meu irmão foi retirado daqui. Pois bem; quando cheguei na delegacia, apareceu um retratista ali do Posto Paraguaçu . Ele havia tirado uma fotografia do mano encostado no seu caminhão e, por sorte minha, o assassino foi pego bem num cantinho da foto! Eu já conhecia o sujeito de vista, quando meu irmão lhe deu carona até Jequié. Chamei sua atenção sobre isso e mandei que tocasse na frente, por segurança. Ele, se tivesse alguma maldade, sabendo disso, não iria tentar nada.
Alguns quilômetros depois de Santo Estevão, parei pra verificar um pneu. O mano, certamente pensando ter havido problema com meu caminhão, parou no Posto Paraguaçu  pra me esperar. Alguma carreta, com carga alta, deve ter parado ao lado e encoberto seu carro, porque ao passar direto, lembro de ter dado uma olhadela pela área do posto e não o vi. Em Milagres fiquei esperando-o pois combinamos fazer a manutenção dos carros naquela cidade.
Foi quando recebi a notícia do seu assassinato. 
Agradeci a fotografia pro retratista. A transportadora transbordou a carga do carro que eu trabalhava e a empresa, proprietária dos dois caminhões, da cidade de São Mateus, no Paraná, onde moro, mandou um motorista para prosseguir com o caminhão do meu irmão. Eu mandei embalsamar o corpo do mano e peguei os papéis judiciais pro transporte do corpo. Botei o caixão na carroçaria, junto do malhal, cobri com o encerado e toquei pro Paraná.
Em São Mateus, após o sepultamento, acertei meus tempos de serviço na empresa, vendi uma casa que estava construindo, comprei um revolver 38 e uma caixa de balas, para cair no mundo, em busca do assassino.

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Quando cheguei na porta de saída com a mala na mão, minha mãe me alcançou e disse:
- Filho, vá cuidar da sua vida e deixe essa obsessão vingativa para um lado. Entregue tudo nas mãos de Deus. Ele nos dá a vida e somente Ele tem o direito de tirá-la!
Aí explodi com a pessoa que mais amo aqui na terra:
- Minha mãe, se somente Deus tem o direito de tirar uma vida aqui da terra, porque Ele deixou que esmagassem a cabeça do meu irmão, o teu filho?!
Ela começou a chorar e disse com os olhos molhados:
- Filho, uma noite quando estiver deitado, mais calmo, eleve seu coração para o alto, o mais alto que puder e pergunte para si mesmo, se o seu irmão está querendo essa morte. Quem sabe, nesse momento de reflexão, calma e solidão, você reflita melhor.
Respondi pra ela:
- Minha mãe, perdoe o que vou lhe dizer: mas a senhora e todas as mães, são tudo amor, tudo perdão e eu não sou nada disso!
Chorando ela me abençoou... Peguei a mala e deixei para trás minha família, minha cidade natal...
A primeira notícia do paradeiro do assassino, me veio uns dois meses mais tarde. Estava trabalhando numa construtora que construía a estrada Bahia-Brasilia, no outro lado do Rio São Francisco, num trecho entre as cidades de Ibotirama e Barreiras, na altura da Serra da Onça. 
Toquei pra lá. Quando cheguei no acampamento da construtora, confirmei que ele trabalhava ali só que avisaram a ele que alguém o procurava. O filho da mãe desconfiou e caiu fora.
Cerca de seis meses depois, consegui nova pista: estava trabalhando num garimpo, no estado do Pará. Novamente me escapou. Um ano mais tarde, outra informação segura: o sujeito trabalhava de peão, numa fazenda na fronteira do Brasil com o Peru, na altura da cidade de Cruzeiro do Sul. Tudo em vão, fugiu dois dias antes da minha chegada! Depois dessa, passei quase três meses sem notícias dele. Só, vagamente, que pendera pros lados do Nordeste. 
Semana passada, num barzinho de Juazeiro da Bahia, soube da notícia que quase fez meu coração pular pela boca! Ao mostrar a foto para um homem com sotaque e feições nordestinas, ele foi taxativo:
- Oxente moço, quero que um raio me corte no meio se esse cabra aí não é o Zé Serafim! Só que tá mais veio do que no retrato! Mora cum a famía três léguas pra dentro de Lagoa Grande, depois de Petrolina, aí do outro lado do Rio São Francisco. 
Mandei descer um litro de conhaque e ele foi falando: 
- Apois tive cum ele, sábado retrasado, na feira de Lagoa Grande.
Em resumo: o assassino comprara um pedaço de terra e voltou definitivamente para a família. No dia seguinte, depois do meio dia, cheguei na cidade pernambucana de Lagoa Grande. Depois que almocei, comecei a me informar. 

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Indago daqui, pergunto dali, até que, numa casa comercial, uma mistura de armazém bar e armarinho, soube pelo dono do estabelecimento, onde morava o Zé Serafim. O homem, quando lhe mostrei a foto, ajeitou o óculo de grau no rosto e exclamou:
- Ora se conheço! É o Zé Serafim. Compra troços comigo. É freguês. Tá até me devendo uma continha.
Após dizer isso, indagou desconfiado:
- Espere aí, quem é o senhor e o que quer com o Serafim?!
Baixei o tom da voz e segredei pra ele:
- Escute, vou lhe pedir pra não espalhar: sou representante da Caixa Econômica Federal. O José Serafim foi premiado na Loteria Esportiva num cartão que jogou na Bahia. Não é muito dinheiro, mas dá pra tirar qualquer um do atoleiro.
O comerciante suspirou aliviado e disse:
- Diz o velho ditado que, Deus quando tarda, já está a caminho. Se existe alguém precisando desse dinheiro agora, esse alguém é o Zé Serafim!
- Como assim? 
Exclamei, o homem prosseguiu:
- Olha, seu moço, o Serafim tá com a terrinha onde vive com a família, pra ser tomada pelo Coronel Fulgêncio porque até hoje não conseguiu pagar nem uma prestação. Vai ficar sem ter onde botar a cabeça com a família. Como se isso não bastasse, semana passada enterrou um filho de doze anos que morreu tuberculoso. Tem mais três filhos. Uma menina de seis anos, um menino de dez e outro de oito. O de dez, tosse muito, parece que também está tuberculoso. O de oito é cego de nascença, dos dois olhos e, pra completar é aleijado de uma perna. Usa muleta. Até o Serafim, parece que também está, além de meio surdo, contaminado com o vírus da tuberculose. Semana passada chegou aqui com uma tosse da gota serena e magro de fazer dó. E, por cima de tudo isso, a seca danada não deixa nascer coisa alguma naquela terra. É vendendo palma pra boi que ele ainda consegue sobreviver com a família. É só o que nasce naquela terra, palma e pronto. A mulher, magra, não está doente. A magreza é fome mesmo!
Bem, esse mesmo comerciante me indicou onde alugar um cavalo. 
Aluguei o animal, deixando uma caução e o homem me ensinou como chegar na terra do Serafim. Parti pra lá, ansioso.
Já tardezinha, encontrei um roceiro montado num burro. Ele me ensinou a casa do Serafim avisando:
- É a primeira casa de taipa à sua esquerda, quase na beira da estrada. Está a menos de meia légua, passei por lá agorinha. O Serafim tá capinando o plantio de palmas, perto da casa.
Agradeci e toquei pra lá. Meu coração batia ansioso. O revolver na cintura estava preventivamente carregado e coberto pela camisa.
De repente, quando estava prestes a consumar minha tão desejada vingança, a coisa começa a correr completamente ao contrário do que imaginei. O assassino do meu irmão, que julgava encontrá-lo como um marginal, desordeiro e odiado, encontro-o sendo bem visto por pessoas de bem e num padrão de vida de extrema miséria, com a família. 

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Mais ainda, como um exemplar pai de família. Sem contar com um filho morto recentemente, uma mulher adoentada e um filho cego e aleijado! As palavras da minha mãe voltaram à minha mente: "Filho, o seu irmão está querendo essa morte?
Menos de cem metros à frente, numa pequena elevação da estrada, avistei a casa e, mais para o lado, Serafim trabalhando com uma enxada. Um novo arrefecimento invadiu meu corpo! Ao sentir que estava fraquejando segurei a rédea  com firmeza e trouxe o pensamento aqui pra esse lugar, para o dia do crime. 
De repente, o desejo de matar aquele homem, novamente voltou com toda força. Senti o sangue ferver, a cabeça esquentar e o coração se encher de ódio. Esporei o cavalo e galopei pra frente
Parei o cavalo a cerca de cinco metros dele.
Como o comerciante disse, o homem realmente estava meio surdo. Apesar do tropel dos cascos, ele continuava curvado, trabalhando a terra. De cima da cela, com o revolver  em posição de tiro e mirando sua cabeça, gritei:
- José Serafim, levante a cabeça e veja a cara da morte!!
Ele deixou a enxada cair no chão e levantou a cabeça. Era mesmo o homem que meu irmão deu carona e que vi por um instante, só que, um pouco mais envelhecido. Apontando a arma e  mirando sua testa, perguntei, exalando ódio, no tom da voz:
- Serafim, você sabe quem vai lhe matar?
Ele abaixou a cabeça e respondeu resignado:
- Sim, o senhor é irmão do caminhoneiro que matei lá  na Bahia. Eu já lhe esperava. Consegui escapar em Ibotirama, na fronteira e muitos outros lugares. Depois desse tempo todo, resolvi parar de fugir pra cuidar da família que estava abandonada. Mas sabia que, cedo ou tarde, seria achado. Então resolvi a não mais fugir. Fiquei para que o senhor, cedo ou tarde, me encontrasse e cumprisse sua vingança. Somente assim eu pagaria pelo crime covarde que cometi e acabar com o remorso que não me deixa, um só instante, desde que matei o seu irmão.
Falei:
- José Serafim, quantas e quantas noites passei em branco, pensando, imaginando a forma mais perversa e cruel de lhe matar. Mas vou ser benevolente contigo. Vai ser um único tiro na sua cabeça.
Ouve um instante de silêncio. Ele se ajoelhou sobre a terra com as mãos cruzadas, trêmulas, à espera do tiro fatal. Mirei no meio da cabeça grisalha e comecei a pressionar o gatilho...
Novamente as palavras da minha mãe voltaram a martelar a minha consciência: 
"Filho, o seu irmão está querendo essa morte?" 
Folguei o dedo no gatilho e perguntei:
- José Serafim, você tem algum último pedido a fazer?
Ele, ainda ajoelhado, olhou para cima com os olhos úmidos e respondeu:
- Sim, deixe que me despeça da mulher e dos filhos. Peço também que me mate longe daqui pra não traumatizar os meninos. Só a mulher sabe do crime. Eu mesmo cavo o buraco pra me enterrar, lá por trás daquele morro.

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 Eles vão pensar que fiz mais uma das minhas viagens demorada.
Avisei: 
- Está bem, pode ir. Mas vou avisar, se você tentar alguma coisa, fora do combinado, faço peneira das paredes da tua casa. Doa em quem doer.
Ele levantou-se e se encaminhou para a casa. O corpo curvado, os ombros arriados. Segui a curta distância. Assim que ele entrou na casa, saltei do cavalo e corri pra parede, onde havia um buraco no barro sem reboco.
Orlando, eu tinha de matar aquele homem. Mas quando ele ajoelhou-se e cruzou as mãos, por mais que me esforçasse, não conseguia forças para apertar o gatilho! Ali na minha frente estava, além do assassino do meu irmão, um homem, indefeso. Quando ele pediu para se despedir da família, gostei, porque tive quase certeza que ele ia se armar. Aí sim, teria coragem para apertar o gatilho, porque estaríamos em igualdade de condições. Inclusive não carregaria pela vida, premorso algum de ter matado um homem desarmado. Olhei para o interior da casa. O serafim deveria estar se armando pra me pegar de surpresa. Colega, foi aí que fiquei completamente desnorteado. Ele ao entrar, caminhou para onde estava uma mulher ao pé do fogão, na cozinha. na pequena sala, dava pra ver, um menino e uma menina, já grandinhos, deitados no chão sobre uma esteira. O menino tossia muito. Era uma tosse seca, persistente. Estavam magros. Na cozinha, ele disse para a mulher:
- Eunice, chegou o dia, a minha hora. Você tá sabendo de tudo. Não faça alvoroço pros meninos não desconfiarem de nada. Mas, se isto acontecer, vamos falar que vou viajar... A mulher começou a chorar, uns soluços abafados. Serafim caminhou para um menino de uns oito anos que chegou do quintal para a cozinha. Ele usava uma pequena muleta sob a axila esquerda e era o único que não tossia. 
Serafim agachou-se à sua frente e disse, envolvendo com suavidade o rostinho dele com suas mãos:
- Filho, papai vai fazer uma viagem longa, muito longa mesmo. Você vai crescer, ficar homem feito e o pai talvez ainda não voltou.  Depois disso não conseguiu dizer mais nada. Sua voz embargou e, chorando, ele abraçou o filho com muleta e tudo. Foi um abraço com tamanha ternura que fiquei sem entender como um homem, com tamanha sensibilidade, cometeu tão hediondo crime, como o do meu irmão!
Serafim deixou o filho aleijado e começou a se despedir dos outros. O aleijadinho voltou por onde viera. Eu, francamente, já não atinava mais o que fazer! De repente ouvi ao meu lado uma voz fina de criança:
- Moço, moço...
Voltei-me. Era o menino aleijado que deu a volta pelo fundo da casa, chegou até eu e me chamava. A princípio, não entendi porque ele falava voltado para o cavalo que acabara de relinchar, no início da plantação de palmas. Respondi:
- Você quer falar comigo, garoto?

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Quando ele se voltou pra mim, colega, quase gelei por dentro! O menino, além de aleijado, como disse o comerciante, também era, ou melhor, é completamente cego dos dois olhos. Seus olhinhos são de um azul-chumbo, somente uma cor, sem 'menina' dos olhos e nem nada! Ante meu silêncio estupefato, ele indagou:
- Moço, é o sinhô qui vai matá papai? - Respondi:
- O que você sabe sobre isso menino? - Perguntei:
- É purquê eu só durmo com papai e mamãe. Faz um tempo, ele pensou qui eu tava durmindo e disse pra mamãe qui tinha matado um chofer na Bahia. Disse que bebeu muita cachaça e quando viu uma pução de dinheiro com o chofer, fez o crime. Falou também qui um remorso muito grande tava consumindo ele por dentro. E qui o irmão dele tava na sua caça. Aí parou de correr mundo pru mode ver se pagava essa terrinha pra nóis ter onde butá a cabeça. Disse também qui quando o senhor aparecesse, num ia reagir. Vai aceitá ser morto pru mode, com a sua morte pagar a morte do homem qui ele matou e só assim, descansá a consciência qui tá pesada.
Colega, o menino não mentia. Realmente meu irmão legava um bom  dinheiro de algumas coisas que vendera em Fortaleza.
Deve ter dado um descuido e deixou o Serafim ver que levava tudo aquilo. O menino pediu:
- Moço, num  mate papai. O sinhô vai ficá cheio de pecado!
Fui grosseiro com ele quando lhe respondi:
- Por acaso, o seu pai não ficou com pecado algum quando esmagou a cabeça do meu irmão?
Ele respondeu:
- Ficou, moço, mas ficou só cum um pecado pru mode de que só matou o seu irmão. O sinhô vai ficá cum muito pecado pru mode de que, vai matá toda a minha famía!
Apressei-me a responder:
- Não garoto, não vou tocar um dedo seu e nem da sua mãe e seus irmãos. Eu só quero o seu pai.
Ele disse, minando lágrimas daqueles olhinhos sem vida:
- Moço, papai é quem arranca, no cabo da enxada, arguma coisa pru mode nóis cumer e comprar argum remédio. O sinhô num tá vendo qui se matá papai, é mermo qui matá todo mundo! Vamo tudo morrendo, ou de fome ou cum a doença do pulmão!
Aquele menino estava certo. Ela acabava de me mostrar o que não quis admitir, desde o início. Realmente se lhe matasse o pai...
De repente a mulher começou a chorar dentro da casa, quase aos gritos: 
- Serafim, não saia, você vai morrer! Não saia, Serafim!!
O menino crispou as mãozinhas no meu corpo e pediu desesperado:
- Moço, faça uma troca. Mate eu, tenha piedade de mim, mate eu! Se fazê isso o sinhô vai ficá sem pecado nenhum. Eu sou sangue de papai, aí sua vingança está cumprida! E salva mamãe e meus irmãos! Mate eu, A minha vida não tem valô algum. Quando crescer só vou sirvir mesmo pru mode esmolar de porta em porta! tenha piedade e mate eu!!

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Colega ele fazia aquele pedido com tanta ânsia que não percebeu suas unhas penetrarem na minha pele e fazendo sangrar em alguns lugares. Em seguida caminhou alguns passos amparado pela muleta, apoiou os braços na parede sem reboco e sobre eles o rostinho molhado de lágrimas. Chorando  lamentava:
- Deus abandonou nóis, Deus abandonou nóis!
Emocionado me agachei perto dele, fiz que se voltasse pra mim, enxuguei seu rostinho com as minhas mãos e perguntei:
- Meu menino, como é seu nome?
Ele respondeu com a voz entrecortada por soluços:
- Eu sou Nezinho.
Recomendei:
- Nezinho, pare de chorar, não vai morrer mais ninguém aqui - Em seguida perguntei. - Isto nos seus olhos, é de nascença?
Ele respondeu com sua vozinha meiga e suave: 
- É sim sinhô, desde qui nasci que não sei o que é a luz do dia! E a perna aleijada foi queda do cavalo. quebrou, atingiu o nervo e ai secou e ficou menor do que a outra!
Sabe moço - lamentou, - eu vim pro mundo tão sem sorte! Adepois eu só tenho minha famía pro mode cuidar de eu, aí chega o sinhô pra matar papai! Eu num sei porque Deus me botou no mundo! Foi só pru mode sofrer, só pru mode sofrer!
Novamente se apoiou na parede e voltou a chorar.
Bem, o que mais queria naquele momento era sair dali o mais depressa que pudesse, pois estava decidido deixar de lado aquela coisa de vingança! Porém, havia um detalhe: Aquele menino não sabia que, mesmo não lhe matando o pai, toda sua família estava praticamente condenados à morte. A tuberculose, se não tratada com farta alimentação e recursos para remédios, é fatal! Inclusive um da família já tinha morrido. Portanto, Orlando, precisava fazer alguma coisa para eles, além de não matar seu pai. Fui até o cavalo, peguei o alforge sobre a cela e retornei. Me agachei novamente em frente dele, pendurei o alforge no seu pescoço e disse: 
- Nezinho, meu menino, dentro dessas duas bolsas de couro, tem o dinheiro que serviria para a caça ao seu pai por mais alguns anos. Como o encontrei mais cedo e em circunstâncias que jamais pude imaginar, é como se esse dinheiro é como se não existisse pra mim!Portanto ele é seu. Vai dar pra pagar a terra pro Coronel, curar os que estão com a doença do pulmão e ainda sobra alguma coisa pra arrumar essa terra esturricada! Parece que as trovoadas vem aí!
Ele meteu as mãozinhas dentro das bolsas e quando sentiu o contato das cédulas, ficou completamente estático. 
Levantei-me e quando virei para trás, Serafim estava de pé, à minha espera...
Após uma pequena pausa, o colega indagou:
- Orlando, você não percebeu nada de estranho nisso aí? Enquanto eu agachado falava com o menino?...
Bati com a mão na testa e me dei conta da coisa:
- Puta merda, colega! Você abaixado, de costas pra ele... O Serafim poderia pegar um pedaço de pau e ter estourado seus miolos como fez com o seu irmão!! 

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- Pois é - disse ele, - mas não o fez. É certo que corri risco de vida, mas também serviu pra mostrar que o homem que matou meu irmão, num instante de bebedeira, estava mesmo disposto a pagar o seu erro com a própria vida. Serviu também pra que eu jamais me arrependa de não o ter matado! Bem, quando fiquei de pé, ele abaixou a cabeça e disse:
- Estou pronto. Faça com que eu pague pelo crime que cometi!
Respondi pra ele.
- José Serafim, hoje aqui, termina a minha peregrinação em busca de você. A mim você não deve mais nada. Se você tem que pagar alguma coisa pela morte do meu irmão, entrego tudo nas mãos de Deus. Ele, somente Ele, saberá o que fazer.
Fui até o menino, beijei seu rostinho molhado, montei no cavalo e
afastei-me a galope.
Adiante, numa pequena elevação da estradinha, onde pela primeira vez avistei a casa de Serafim, parei o cavalo e voltei-me para a casa dele. Colega, naquele momento eu presenciei uma cena que está gravada aqui - tocou o dedo na fronte, - mais nítida do que uma fotografia a cores! O José Serafim estava ajoelhado no terreiro da casa com as mãos cobrindo o rosto. Parecia chorar. À sua volta, a mulher com os filhos, também de joelhos. Mais atrás, recostado na parede, o menino Nezinho, com a cabeça e os bracinhos erguidos pro alto. Parecia agradecer ao céu, alguma graça recebida. 
Tarde da noite cheguei Em Lagoa Grande.
Aí, aconteceu um troço meio engraçado comigo: quando dei por mim, estava sem um puto no bolso!
Na manhã seguinte, peguei o dinheiro da caução do cavalo e vendi o revolver num armeiro da cidade. Peguei um ônibus que vinha do Recife para São Paulo e saltei aqui. Antes de embarcar, liguei pro Mato Grosso. Minha mãe atendeu. Ao reconhecer minha voz, desatou em lágrimas. Disse pra ela. Mãe, está tudo terminado. Estou retornando pra casa e ver se recupero o tempo perdido. Contei tudo sobre Serafim, sua família e o menino Nezinho e da ajuda que lhe dei. Ela, chorando me interrompeu dizendo e repetindo: Deus ouviu minhas preces, Deus ouviu minhas preces!
Meu irmão mais velho tomou o telefone dela e falou. Mano, você é bem-vindo. Ouvi tudo pela extensão. Quero lhe dizer que a nossa família está prosperando e, ao mesmo tempo lhe avisar que toda nossa vamos nos reunir e nos encarregar para que você recupere o tempo perdido o mais depressa possível. No máximo, depois de amanhã, um caminhão novo, da marca que você gosta, vai estar aqui na porta, completamente pago e emplacado no seu nome. Será o presente da sua família que muito lhe quer. E nos avise quando vai chegar. Vamos lhe esperar com um churrasco de fazer inveja a político em campanha. 
Insistiu para mandar dinheiro para despesas e passagem de avião. Agradeci, pois precisava dar uma passadinha aqui, neste local.
Após uma breve pausa, ele disse:

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- Essa é a história da minha, como assim dizer, quase vingança.
Eu estava boquiaberto com a história que terminara de ouvir. Ele, de surpresa, me perguntou:
- Nessas circunstâncias, no meu lugar, você mataria o Serafim?!
Apressei-me a responder:
- Deus que me livre, colega. Não matava de jeito nenhum, de maneira alguma!
Ficamos de pé, eu lhe propus:
- Colega, ao invés de pegar ônibus, porque não vai comigo? De qualquer maneira você não vai mesmo conseguir ônibus direto pro 
Mato Grosso. Vai ter de fazer diversas baldeações. Estou indo pra São Paulo. Você me dando uma mãozinha, dentro de três dias entramos na pauliceia. Mesmo você está precisando desenferrujar as juntas.
Ele se alegrou: 
- Você confia em me levar e me dar o volante?
- Ora se confio!
Após uma gostosa risada - acho que não fazia aquilo há bastante tempo, - ele brincou:
- Esse caminhão é seu?
- Sim - respondi.
- Você é agregado a alguma empresa de transporte?
- Não. Então carrega pra onde quiser?
- Claro. Pra onde der na telha.
- Então - disse voltando a sorrir, - pra aceitar o seu convite, vou impor uma condição: em São Paulo você carrega pro Mato Grosso e vai comer do meu churrasco e conhecer a minha família, topa?
Estirei o braço direito com a mão espalmada respondi:
- Topo.
Foi um aperto de mão franco, caloroso. em seguida caminhei para o caminhão e, ao voltar-me, me emocionei ao ver o colega acariciando o topo da cruz. Fazia aquilo com tanto carinho e ternura que dava a impressão de estar afagando a cabeça do irmão, quando em vida! Suas palavras de despedida chegaram a mim, trazidas pela brisa:
- Mano, vou chegando, tá? Tenho certeza que você quis e contribuiu para que tudo terminasse assim. Até breve. Sempre que passar por aqui, paro pra acender umas velinhas e agente bater um papinho. Fique com Deus.
Em seguida se benzeu e se afastou, me acompanhando. Subi na cabine e destravei a porta pra ele. Reiniciei a viagem e, minutos depois, avistamos o clarão da cidade de Milagres. Ele, olhando a noite lá fora, pareceu levar seus pensamentos para Pernambuco, quando comentou:
- O menino Nezinho, lamentou: "Eu nasci tão sem sorte!" Pois eu digo: eu vou ser a sorte daquele menino.
- Vai ser não, já está sendo.

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- Isso mesmo - confirmou, - já estou sendo, mas vou ser mais ainda, muito mais. A primeira viagem que vir pro lado do Nordeste, vou passar por Lagoa Grande e pedir aos seus pais pra consentirem que ele venha ao Mato Grosso comigo, conhecer a minha família e passar uns tempos com a minha mãe. Quem sabe seu Serafim e sua esposa deixa Nezinho ficar definitivamente com agente. 
Sabe Orlando, eu me apaixonei por aquela criança! A sua perninha talvez não tem mais jeito, mas seus olhos podem ser operados. Transplante de córneas, hoje, é muito comum. Eu juro por Deus que Nezinho, um dia, verá a luz do dia...
Completei:
- Moral da história, você perdeu um irmão e está ganhando um menino a quem está amando como a um filho.
Ele assentiu que sim, com a cabeça, eu completei em pensamentos:
"Um filho do assassino do seu irmão. É incrível isso!!"
Foi aí que bati com a mão direita aberta sobre o painel e sugeri:
- Colega, tudo isso aí está merecendo uma senhora comemoração! Vamos dormir em Milagres, molhar nossas gargantas com algumas cervejas e a mega comemoração ficará para quando chegarmos no Mato Grosso, junto aos seus familiares. Está ok?
Ele sorriu e disse:
- Gostei da ideia, gostei mesmo!
Em seguida arriou o braço direito pro lado de fora, começou a batucar levemente na chapa da porta e assobiar a música de Roberto Carlos, "O caminhoneiro", todo cheio de paz por dentro.
Hoje, ao passarmos por aquelas imediações da BR-116, vemos uma cruz à margem da estrada e, vez por outra, junto dela, um caminhoneiro de joelhos fazendo preces ao irmão amado.
Ali só não existe mais mesmo, é o desejo de vingança. Um menino cego e aleijado, mudou o rumo da história.

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